A Ordem. Daniel Silva

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A Ordem - Daniel Silva


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reuniria dez dias depois. Os vaticanisti previam uma disputa renhida e fraturante entre reformadores e conservadores. As apostas centravam-se no cardeal José Maria Navarro, que usara a sua posição como guardião doutrinário da Igreja para construir uma base de poder no seio do Colégio Cardinalício que rivalizava, até, com a do papa defunto.

      Em Veneza, onde Pietro Lucchesi reinara como patriarca, o presidente do município declarou três dias de luto. Os sinos da cidade ficaram em silêncio e houve um serviço religioso moderadamente participado na Basílica de São Marcos. À exceção disso, a vida prosseguiu como normalmente. Uma pequena acqua alta inundou uma parte da Santa Croce e um cruzeiro colossal colidiu contra um cais do canal da Giudecca. Nos estabelecimentos onde os locais se reuniam para beber um café ou um copo de aguardente contra o frio outonal, raramente se ouvia o nome do falecido pontífice. Cínicos por natureza, poucos venezianos se davam ao trabalho de assistir à missa regularmente e menos ainda viviam as suas vidas de acordo com os ensinamentos dos homens do Vaticano. As igrejas de Veneza, as mais belas de toda a Cristandade, eram locais onde os turistas estrangeiros iam para contemplar arte renascentista.

      Contudo, Gabriel seguia os acontecimentos em Roma com um interesse mais do que superficial. Na manhã das exéquias fúnebres do papa, chegou cedo à igreja e trabalhou sem interrupções até ao meio-dia e um quarto, quando ouviu o eco oco de passos na nave. Levantou a sua viseira de ampliação e abriu cuidadosamente a cortina de lona que tapava a sua plataforma. O general Cesare Ferrari, comandante da Divisão de Defesa do Património Cultural dos Carabinieri, mais conhecida como Brigada de Arte, devolveu-lhe um olhar sem expressão.

      Sem que tivesse sido convidado, o general atravessou a cortina e contemplou a enorme tela, banhada pela luz branca abrasadora de dois candeeiros de halogéneo.

      — É um dos melhores dele, não acha?

      — Estava sob enorme pressão para provar o seu valor. Veronese tinha sido reconhecido publicamente como o sucessor de Ticiano e o melhor pintor de Veneza. O pobre Tintoretto já não recebia o mesmo tipo de encomendas de antes.

      — Esta era a paróquia dele.

      — Não me diga.

      — Vivia ao virar da esquina, na Fondamenta di Mori. — O general afastou a lona para o lado e dirigiu-se para a nave. — Antigamente, havia um Bellini nesta igreja. A Virgem com o Menino. Foi roubado em 1993. A Brigada de Arte anda à procura dele desde então. — Perscrutou Gabriel por cima do ombro. — Não o viu, pois não?

      Gabriel sorriu. Pouco antes de se tornar chefe do Departamento, recuperara a pintura roubada mais procurada do mundo, a Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio. Tinha-se assegurado de que a Brigada de Arte recebia todo o crédito por isso. Fora por esse motivo, entre outros, que o general Ferrari aceitara providenciar a Gabriel e à sua família segurança vinte e quatro horas por dia, durante as suas férias em Veneza.

      — Era suposto estar a descansar — disse o general.

      Gabriel baixou a viseira de ampliação.

      — E estou.

      — Há algum problema?

      — Por razões inexplicáveis, estou a ter algumas dificuldades em recriar a cor da vestimenta desta mulher.

      — Refiro-me à sua segurança.

      — Parece que o meu regresso a Veneza passou despercebido.

      — Não completamente. — O general olhou de relance para o relógio de pulso. — Calculo que não consiga convencê-lo a fazer uma pausa para o almoço…

      — Nunca almoço, quando estou a trabalhar.

      — Sim, eu sei. — O general desligou os candeeiros de halogéneo. — Ainda me lembro.

      Tiepolo dera a Gabriel uma chave da igreja. Observado pelo comandante da Brigada de Arte, acionou o alarme e trancou a porta. Caminharam juntos até um café que ficava algumas portas abaixo da antiga casa de Tintoretto. O funeral papal passava na televisão atrás do balcão.

      — Caso esteja a perguntar-se — disse o general —, o arcebispo Donati queria que estivesse presente.

      — Então, porque é que não fui convidado?

      — O camerlengo não permitiu.

      — O Albanese?

      O general assentiu com a cabeça.

      — Pelos vistos, nunca se sentiu confortável com a proximidade da sua relação com o Donati. Aliás, nem com o Santo Padre.

      — Provavelmente, é melhor eu não ter ido. A minha presença só teria sido uma distração.

      O general franziu o sobrolho.

      — Deviam tê-lo sentado num lugar de honra. Afinal, se não fosse por si, o Santo Padre teria morrido no atentado terrorista no Vaticano.

      O empregado, um rapaz magricelas de vinte e poucos anos, vestido com uma t-shirt preta, serviu-lhes dois cafés. O general acrescentou açúcar ao seu, mexendo com uma mão à qual faltavam dois dedos. Perdera-os devido a uma carta armadilhada, quando era comandante da divisão de Nápoles dos carabinieri, que estava infestada pela Camorra. A explosão também lhe levara o olho direito. A prótese ocular, com a sua pupila imóvel, deixara o general com um olhar frio e inflexível. Até Gabriel tinha tendência para o evitar. Era como fitar o olho de um Deus que tudo vê.

      Naquele momento, o olho estava apontado na direção da televisão, onde a câmara se movia lentamente para mostrar uma galeria de políticos, monarcas e celebridades globais variadas. Finalmente, deteve-se em Giuseppe Saviano.

      — Pelo menos não está de braçadeira — murmurou o general.

      — Não é um admirador?

      — O Saviano é um defensor apaixonado do orçamento da Brigada de Arte. Como tal, damo-nos bastante bem.

      — Os fascistas adoram o património cultural.

      — Ele considera-se um populista, não um fascista.

      — Que alívio.

      O breve sorriso de Ferrari não se espelhou minimamente na sua prótese ocular.

      — A ascensão de um homem como o Saviano era inevitável. O nosso povo perdeu a fé, com noções fantasiosas como democracia liberal, União Europeia e aliança ocidental. E como é que não perderia? Entre a globalização e a automatização, a maioria dos jovens italianos não consegue começar uma carreira digna. Se quiserem um emprego bem remunerado, têm de ir para a Grã-Bretanha. E, se ficarem aqui… — O general olhou de soslaio para o jovem atrás do balcão. — Servem cafés aos turistas. — Baixou o tom de voz. — Ou aos espiões israelitas.

      — O Saviano não vai alterar nada disso.

      — Provavelmente, não. Mas, entretanto, vai projetando força e confiança.

      — Então, e a competência?

      — Desde que mantenha os imigrantes afastados, os seus partidários estão-se nas tintas para o facto de ele não conseguir construir uma frase.

      — E se houver uma crise? Uma verdadeira crise. Não uma inventada por um site de direita.

      — Como por exemplo?

      — Pode ser outra crise financeira que arrase o sistema bancário. — Gabriel fez uma pausa. — Ou algo muito pior.

      — O que é que poderia ser pior do que ver as poupanças da minha vida inteira esfumarem-se?

      — Que tal uma pandemia global? Uma nova estirpe de gripe para a qual os humanos não tenham uma defesa natural.

      — Uma praga?

      — Não se ria, Cesare. É só uma questão de tempo.

      — E de onde é que virá essa sua praga?

      — Vai passar de animais para humanos num


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