Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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Estou doido por ti, filha!

      — Creio lá nisso! murmurou ela.

      Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:

      — Sabes? talvez eu tenha de me ir amanhã embora.

      — Vai-se?

      — Talvez; não sei ainda. Além de amanhã é a matrícula.

      — Vai-se... suspirou Amélia.

      Ele então tomou-lhe a mão, apertou-lha com furor:

      — Escreve-me! disse.

      — E a mim, escreve-me? disse ela.

      Agostinho agarrou-a pelos ombros e machucou-lhe a boca de beijos vorazes.

      — Deixe-me! deixe-me! dizia ela sufocada.

      De repente teve um gemido doce como um arrulho de ave, e abandonava-se — quando a voz aguda de D. Joaquina Gansoso gritou:

      — Há uma aberta. É andar! é andar!

      E Amélia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o guarda-chuva da mamã.

      Ao outro dia, com efeito, o Sr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras chuvas, e dentro em pouco também Amélia, a mãe, a Sra. D. Maria da Assunção voltaram para Leiria.

      Passou o Inverno.

      E um dia, em casa da S. Joaneira, D. Maria da Assunção deu parte que o Agostinho Brito, segundo lhe escreviam de Alcobaça, tinha o casamento justo com a menina do Vimeiro.

      — Cáspite! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus trinta contos! Olha o meco!

      E diante de todos Amélia rompeu a chorar.

      Amava Agostinho; e não podia esquecer aqueles beijos de noite no pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então que não tornaria a ter alegria! Ainda lembrada daquele moço da história do Tio Cegonha, que por amor se escondera na solidão de um convento, começou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoção, manifestação exagerada das tendências que desde pequenina as convivências de padres tinham lentamente criado na sua natureza sensível; lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes do quarto de litografias coloridas de santos; passava longas horas na igreja, acumulando Salve-Rainhas à Senhora da Encarnação. Ouvia todos os dias missa, quis comungar todas as semanas — e as amigas da mãe achavam-na "um modelo, de dar virtude a incrédulos" !

      Foi por esse tempo que o cônego Dias e sua irmã, a Sra. D. Josefa Dias, começaram a frequentar a casa da S. Joaneira. Dentro em pouco o cônego tornou-se o "amigo da família". Depois do almoço era certo com a sua cadelinha, como outrora o chantre com o seu guarda-chuva.

      — Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joaneira. Mas o senhor chantre não há dia nenhum que me não lembre dele!

      A irmã do cônego tinha então organizado com a S. Joaneira a Associação das Servas da Senhora da Piedade. A Sra. D. Maria da Assunção, as Gansosos "filiaram-se"; e a casa da S. Joaneira tornou-se um centro eclesiástico. Foi esse o momento melhor da vida da S. Joaneira; "a Sé, como dizia com tédio o Carlos da botica, era agora na Rua da Misericórdia". Parte dos cônegos, o novo chantre, vinham todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrúpulo, eram examinadas em doutrina antes de serem aceitas. Ali muito tempo fizeram-se as reputações: se se dizia de um homem: não é temente a Deus, havia o dever de o desacreditar santamente. As nomeações de sineiros, coveiros, serventes de sacristia arranjavam-se ali por intrigas sutis e palavras piedosas. Tinham tomado um certo vestuário entre o preto e o roxo; toda a casa cheirava a cera e a incenso; e a S. Joaneira, mesmo, monopolizara o comércio das hóstias.

      Assim passaram anos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se: a ligação do cônego Dias e da S. Joaneira, muito comentada, afastou os padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia também — como era de tradição naquela diocese, fatal aos chantres; e já não eram divertidos os quinos das sextas-feiras. Amélia mudara muito; crescera: fizera-se uma bela moça de vinte e dois anos, de olhar aveludado, beiços muito frescos — e achava a sua paixão pelo Agostinho uma "tontice de criança". A sua devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na religião e na igreja era o aparato, a festa — as belas missas cantadas ao órgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mor na glória das flores cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata, os uníssonos que rompem briosamente no coro das aleluias. Tomava a Sé como a sua Ópera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se vestir, de se perfumar com água-de-colônia, de se ir aninhar sobre o tapete do altar-mor, sorrindo ao padre Brito ou ao cônego Saldanha. Mas em certos dias, como dizia a mãe, "murchava"; voltavam então os abatimentos de outrora, que a amarelavam, lhe punham duas rugas velhas ao canto dos lábios: tinha nessas ocasiões horas duma vaga saudade parva e mórbida, em que só a consolava cantar pela casa o Santíssimo ou as notas lúgubres do toque da Agonia. Com a alegria voltava-lhe o rosto do culto alegre — e lamentava então que a Sé fosse uma ampla estrutura de pedra dum estilo frio e jesuítico: quereria uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada, forrada de papel, iluminada a gás; e padres bonitos oficiando a um altar ornado como uma étagère.

      Fizera vinte e três anos quando conheceu João Eduardo no dia da procissão de Corpus-Christi, em casa do tabelião Nunes Ferral, onde ele era escrevente. Amélia, a mãe, a Sra. D. Josefa Dias tinham ido ver a procissão da bela varanda do tabelião, guarnecida de colchas de damasco amarelo. João Eduardo estava lá, modesto, sério, todo vestido de preto. Havia muito que Amélia o conhecia; mas naquela tarde, reparando na brancura da sua pele e na gravidade com que ajoelhava, pareceu-lhe "muito bom rapaz".

      À noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de colete branco, foi pela sala exclamando, entusiasmado, com a sua voz de grilo: — É tirar pares, é tirar pares! — enquanto a filha mais velha ao piano tocava com brio estridente uma mazurca francesa. João Eduardo aproximou-se de Amélia:

      — Ai, eu não danço! — disse ela logo com ar seco.

      João Eduardo não dançou também; foi encostar-se a uma ombreira com a mão na abertura do colete, os olhos fitos em Amélia. Ela percebia, desviava o rosto, mas estava contente; e quando João Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se ao pé dela, Amélia fez-lhe logo lugar acomodando os folhos de seda, agradada. O escrevente, embaraçado, torcia o bigode com a mão trêmula. Por fim Amélia voltando-se para ele:

      — Então o senhor não dança também?

      — E a Sra. D. Amélia? disse ele baixo.

      Ela inclinou-se para trás, e batendo nas pregas do vestido:

      — Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.

      — Nunca se ri? perguntou ele, pondo na voz uma intenção fina.

      — Às vezes rio quando há de quê, disse ela olhando-o de lado.

      — De mim, por exemplo.

      — De si!? Ora essa! Está a caçoar comigo? Por que me hei-de eu rir do senhor? Boa!... então o senhor que tem que faça rir? — e agitava o seu leque de seda preta.

      Ele calou-se, procurando as idéias, as delicadezas.

      — Então sério, sério, não dança?

      — Já lhe disse que não. Ai, que é tão perguntador!

      — É porque me interesso por si.

      — Ora, deixe lá! disse ela fazendo um indolente gesto de negativa.

      — Palavra!

      Mas a Sra. D. Josefa Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa muito franzida, e João Eduardo levantou-se, intimidado.

      À saída, quando Amélia no corredor punha os seus agasalhos, João Eduardo veio dizer-lhe, de chapéu na mão:

      — Cubra-se bem, não apanhe frio!

      —


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