Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco - August Nemo


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vindo do escultor, e o magistrado não podia com segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa 3.

      O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando ela o remirava com a luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude.

      Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general frígido no caldeirão sarrareno ria dos primos, que, por amor dela, erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero, e cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores da província não desconheciam as graças hípicas do marquês de Marialva.

      Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista que lhe trazia o espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e conhecia Rita cada vez mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo disforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a memória, e esse, com quanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o casamento de Vênus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricara para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquele marido. Entre si, dizia ele, que, erguido o véu da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o alfares, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fora era entendido com muito superior inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e das Ordenações do Reino.

      Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Vila-Real, e duradoura memória da sua soberba, formosura e graças de espírito. O marido também deixou anedotas que ainda agora se repetem. Duas contarei somente para não enfadar. Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar com ela a vaca, para se não desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escárnio um presente de doces, que valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da bandeja, E assim é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando se dá um caso análogo de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: "Aquele é como o doutor Brocas".

      Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra, Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa de uma antigüidade que principia na aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correais de Mesquita, desprimorando-lhe as cãs com o fato de ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta.

      Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Viseu.

      Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e freqüenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe.

      O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o gênio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.

      Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu pai outro destino, D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete.

      No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer forçar a viver monásticamente.

      Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em gênio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerência de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem obedecia, se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que não andasse com pessoas mecânicas.

      Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um dos seus criados tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado; espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado de um fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à porta do magistrado.

      Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que o prendesse à sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.

      O corregedor quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estúpido juiz.

      II

      Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pusera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada deste, o levantar-se daquele, ensangüentado, a bordoada que abrangia três a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se nestas lembranças, como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os louros de cada uma, e esmorece, afinal, estafado de espantar, quando não é de estafar, os ouvintes.

      O acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da revolução francesa não tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto do mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte bebera a peçonha que saiu no sangue de noventa e três, não eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classes manufatureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos,


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