Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo


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à luz branca e viva das lâmpadas, precipitavam os dedos nos caixotins, enchendo os componedores com um trepidar metálico de gotas d'água em zinco.

      O Mário, d'óculos, apressado, ia de um a outro, examinando: inclinava-se sussurrando, como se comunicasse segredos, e havia, por vezes, um zumbido de vozes surdas, interrompido pela tosse cavernosa de um rapaz bronzeado, esguio e ossudo que, de instante a instante, ia à janela escarrar e lá ficava, curvado, tossindo aos arrancos, cavadamente. como se tivesse o peito devastado e oco.

      O Sampaio, diante do mármore, a mascar o charuto, ia desligando os paquets para a paginação, enquanto o Lúcio, retranca, besuntado de tinta, mangas arregaçadas, tirava as últimas provas que os revisores esperavam.

      Subitamente um bufo, como da expansão de uma válcula, subiu das oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente, com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas moveram-se, abalando o soalho em trepidações contínuas.

      O Malheiros, dobrando-se, tomou entre as mãos enlaçadas um dos joelhos e suspirou:

      "Não podia ouvir aquilo sem saudade: lembrava-se da sua viagem e pensava no Norte. Parecia-lhe que se achava a bordo, no convés, estirado num banco, ao clarão da lua, ouvindo as fontes pulsações da máquina que impelia o navio pelo mar luminoso." E, sonhando, deixava-se ficar muito quieto, olhos semicerrados, viajando imaginariamente para o seu torrão longínquo: praias longas, ondulando em dunas alvas, praias que o mar bravio lambe e assoalha de espumas, donde os jangadeiros, cantando, arrastam as jangadas que, de velas pandas, aos galões, partem, montando a vaga, perdendo-se nos horizontes azuis.

      O Bruno, esse detestava a oficina: o "antro do Dragão". O prelo era: o Monstro devorador do gênio; e, sempre que ouvia a crepitação das correias nas polias ou o rolar dos cilindros das marinônis, murmurava, com ódio e nojo: "Lá está a besta mastigando!"

      Nessa noite, mais irritado, irrompeu furioso:

      — Eu podia estar na redação, ganhando mais e com outras regalias: escrevo com sintaxe e com arte, tenho a minha porção de ciência e de literatura, coisas que não possuem muitos dos que se inculcam, com vaidade, jornalistas; mas não quero: prefiro ficar por aqui, em nível inferior, conservando a integridade perfeita do meu espírito; ao menos não se dirá que cevo o "Monstro" que lá está experimentando as mandíbulas de ferro em folhas velhas, babando-as de saliva negra, como a jibóia lubrifica a presa antes de a engolir. Faz apetite à espera da ração, o estúpido.

      "Eu sei que o escrito é um alimento indispensável ao espírito das gentes: entendo, porém, que os intelectuais devem apenas preparar o néctar divino e não essa mixórdia em que entra tudo - desde o espargo até a couve tronchuda.

      "Vejam vocês: um artista como o Penante faz uma bela página de prosa ática - períodos polidos a capricho, como só ele os sabe polir. Compõe o Mendonça, com a magnificência do seu talento, um poemeto de rendilhados versos bizantinos. Escreve o Rocha um daqueles antigos de original beleza, nos quais a gente encontra a Musa cantando, desolada. no serralho da Política, como a Cativa, de Hugo, na alcáçova do Turco, e vêm esses primores aqui para cima, na mesma cesta em que sobem as ignomínias das penas anônimas, como as rosas que chegam do mercado num samburá entre repolhos e nabos.

      "Aqui misturam-se com os artigos pífios, cuja sintaxe temos de arranjar, raspando-lhes os solecismos - porque, meus amigos, a verdade é esta: nós somos como os ajudantes de cozinha, que lavam as ervas das hortas tirando-lhes a terra e as lesmas. O mesmo rolo que passou sobre as imbecilidades do a pedido, passa por eles; o mesmo componedor, onde se acomodaram aqueles alexandrinos de ouro e aqueles períodos lapidares, acolhe a mofina salaz e covarde e o atoucinhado anúncio, a ignomínia da charada e o sórdido folhetim desconchavado, sem nexo, sem forma, e, depois, lá vai tudo, como um guisado. ser triturado, digerido e lançado, por fim, na página, alfuja onde fermenta a estrumeira da civilização.

      "Bolas! Arte é arte! A palavra é uma centelha, é preciso que tenha uma trípode. Prefiro ser revisor. Não tenho cérebro para regalo da Besta que se contenta com a panelada farta e grossa. O meu cérebro, se algum dia fornecer alimento ao animal, dará o néctar ideal, sem ingredientes pulhas da horta indígena, como a mofina, ou da salsicharia universal, como os telegramas. Isso é a Besta máxima da Vulgaridade. Lá está mastigando cérebros: o cérebro suntuoso do Mendonça e o miolo infame do taverneiro, que anuncia malas de carne-seca ou sessões na sua Beneficente. Que te saiba, bruto! essa polenta ignóbil."

      Os companheiros riam vendo o Bruno, de mãos atafulhadas nos bolsos, indo e vindo no estreito espaço que havia entre as mesas da revisão, a cuspilhar, resmungando contra aquela "moenda infame".

      O Malheiros gostava de provocá-lo, sublinhando-lhe os disparates:

      — Ó Bruno, o monstro come cérebros e faz estrumeira ou prepara o guisado para o público? Vê lá em que ficas.

      — Fico em afirmar que é o realejo da palavra! - concluiu, indignado, o puritano da Arte.

      Riram. E o Bruno foi resmungar, debruçado à balaustrada da escada que descia para a oficina.

      Paulo conservava-se indiferente. Debalde o Bruno bramia e gesticulava, ele não estava de veia alegre: sentia-se mole, exausto, com uma dorzinha de cabeça. Andara todo o dia, rua abaixo, rua acima com receitas e medicamentos, porque a moléstia da mãe agravara-se com a umidade daqueles dias, prendendo-a à cama. Não fora à Escola, estava abatido e com um vazio no estômago como se estivesse em jejum.

      Tomou o chapéu e o guarda-chuva a um canto, apanhou um embrulhinho na mesa e, secamente, despediu-se dos companheiros atirando uma leve pancada ao ombro do Brites, que respungou, sem levantar a cabeça: "Boa noite!" O Sampaio, vendo-o sair, perguntou com o charuto nos dentes:

      — Então, já?

      — É verdade. - E foi descendo lentamente.

      No primeiro andar, numa sala escura dos fundos, o pessoal do correio cortava as listas da expedição e o Moraes, plantonista, gordo, pletórico, sempre empanzinado, que tinha fama nos clubes de ser um garfo respeitável, para não ficar só na redação, lá estava encostado à comprida mesa, roncando pilhérias com ânsias de asma e muita gosma.

      Descendo mais alguns degraus, Paulo deteve-se, como sempre fazia para olhar um instante, através das grades, a oficina toda tomada pelos complicados maquinismos - desde as marinônis soberbas, juntas, como dois animais de raça, ocupando uma ala à parte, até os pequenos prelos de mão que uma criança movia.

      O motor, ao fundo, com a chaminé esgalgada como um pescoço de girafa, furava o teto atravessado de longos eixos sobre os quais giravam polias movidas pelas correias, que eram como os nervos daquele possante organismo.

      No meio da sala, ao rés-do-chão, dois cilindros brancos rodavam rapidamente ligados por uma larga faixa. Sobre um deles caía um estilicídio perene: eram os rolos de papel que, depois de umedecidos, deviam ser levados às marinônis para que, impressos e cortados, saíssem aos milheiros. com a primeira luz da madrugada, propagando sucessos e desastres.

      Homens iam e vinham apressados, outros cercavam o mármore, onde jazia a página e, com pedacinhos de papelão, iam acamando certos tipos para que ressaltassem na estereotipia; outros levavam grandes folhas de estanho, reluzentes como prata e mergulhavam-nas nos fundidores, onde se derretiam como se fossem de neve e, com o volteio daquelas rodas céleres e as vozes e os passos dos que se moviam e o chiar das correias que estralejavam, de quando em quando, um constante e estranho rumor de vida agitava a oficina onde as lâmpadas suspensas brilhavam como grossas gotas de luz.

      — Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta do "Monstro" vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras vasas anunciadoras do parto.

      Paulo,


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