Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Lima Barreto - August Nemo


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e respondeu sem convicção ao padrinho:

      — Gosto.

      A visita não se demorou muito mais. Era conveniente que fosse rápida, não convinha fatigar a atenção do convalescente. Os dois saíram sem esconder que iam esperançados e satisfeitos.

      Na porta já havia alguns visitantes à espera do bonde. Como não estivesse o veículo no ponto, foram indo ao longo da fachada do manicômio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ela:

      — Que tem, minha velha?

      A pobre mulher deitou sobre ele um demorado olhar, úmido e doce, cheio de uma irremediável tristeza, e respondeu:

      — Ah! meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!

      E continuou a chorar. Coleoni começou a comover-se; a filha olhou-a com interesse e perguntou no fim de um instante:

      — Morreu?

      — Antes fosse, sinhazinha.

      E por entre lágrimas e soluços contou que o filho não a conhecia mais, não lhe respondia às perguntas; era como estranho, Enxugou as lágrimas e concluiu:

      — Foi "coisa-feita".

      Os dois afastaram-se tristes, levando n'alma um pouco daquela humilde dor.

      O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Açúcar erguia-se negro, hirto, solene, das ondas espumejantes e como que punha uma sombra no dia muito claro.

      No instituto dos Cegos, tocavam violino e a voz plangente e demorada do instrumento parecia sair daquelas coisas todas, da sua tristeza e da sua solenidade,

      O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no largo da Carioca. É bom ver-se a cidade nos dias de descanso, com as suas lojas fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos ressoam como em claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto, faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de carroças e gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do negociante brincam em velocípedes, atiram bolas e ainda mais se sente a diferença da cidade do dia anterior.

      Não havia ainda o hábito de procurar os arrabaldes pitorescos e só encontravam, por vezes, casais que iam apressadamente a visitas, como eles agora. O largo de São Francisco estava silencioso e a estátua, no centro daquele pequeno jardim que desapareceu, parecia um simples enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com poucos passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse à casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se aproximava e as toilettes domingueiras já apareciam nas janelas. Pretos com roupas claras e grandes charutos ou cigarros; grupos de caixeiros com flores estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas: cartolas antediluvianas ao lado de vestidos pesados de cetim negro, envergados em corpos fartos de matronas sedentárias e o domingo aparecia assim decorado com a simplicidade dos humildes, com a riqueza dos pobres e a ostentação dos tolos.

      Dona Adelaide não estava só. Ricardo viera visitá-la e conversavam. Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, ele contava à velha senhora o seu último triunfo:

      — Não sei como há de ser, Dona Adelaide. Eu não guardo as minhas músicas, não escrevo - é um inferno!

      O caso era de pôr um autor em maus lençóis. O Senhor Paysandón, de Córdoba (República Argentina), autor muito conhecido na mesma cidade, lhe tinha escrito, pedindo exemplares de suas músicas e canções. Ricardo estava atrapalhado, Tinha os versos escritos, mas a música não. É verdade que as sabia de cor, porém, escrevê-las de uma hora para outra era trabalho acima de sua força.

      — É o diabo! continuou ele. Não é por mim; a questão é que se perde uma ocasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.

      A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A sua educação, que se fizera vendo semelhante instrumento entregue a escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a atenção de pessoas de certa ordem, Delicada, entretanto, suportava a mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima pelo famoso trovador dos suburbanos. Nasceu-lhe essa estima pela dedicação com que ele se houve no seu drama familiar. Os pequenos serviços e trabalhos, os passos para ali e para aqui, ficaram a cargo de Ricardo, que os desempenhara com boa vontade e diligência.

      Atualmente era ele o encarregado de tratar da aposentadoria do seu antigo discípulo. É um trabalho árduo, esse de liquidar uma aposentadoria, como se diz na gíria burocrática. Aposentado o sujeito, solenemente por um decreto, a coisa corre uma dezena de repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave do que a gravidade com que o empregado nos diz; ainda estou fazendo o cálculo; e a coisa demora um mês, mais até, como se se tratasse de mecânica celeste.

      Coleoni era o procurador do major, mas não sendo entendido em coisas oficiais, entregou ao Coração dos Outros aquela parte do seu mandato.

      Graças à popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a resistência da máquina burocrática e a liquidação estava anunciada para breve.

      Foi isso que ele anunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da filha. Pediram, tanto ele como Dona Adelaide, notícias do amigo e do irmão.

      A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou compreendendo melhor; mas o sentira profundamente com o sentimento simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura.

      Ricardo Coração dos Outros gostava do major, encontrara nele certo apoio moral e intelectual de que precisava. Os outros gostavam de ouvir o seu canto, apreciavam como simples diletantes; mas o major era o único que ia ao fundo da sua tentativa e compreendia o alcance patriótico de sua obra.

      De resto, ele agora sofria particularmente - sofria na sua glória, produto de um lento e seguido trabalho de anos. É que aparecera um crioulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já era citado ao lado do seu.

      Aborrecia-se com o rival, por dois fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo: por causa das suas teorias.

      Não é que ele tivesse ojeriza particular aos pretos. O que ele via no fato de haver um preto famoso tocar violão, era que tal coisa ia diminuir ainda mais o prestígio do instrumento. Se o seu rival tocasse piano e por isso ficasse célebre, não havia mal algum; ao contrário: o talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermédio do instrumento considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o preconceito que lhe cercava a pessoa, desmoralizava o misterioso violão que ele tanto estimava. E além disso com aquelas teorias! Ora! Querer que a modinha diga alguma coisa e tenha versos certos! Que tolice!

      E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim diante dele como um obstáculo imprevisto na subida maravilhosa para a sua glória. Precisava afastá-lo, esmagá-lo, mostrar a sua superioridade indiscutível; mas como?

      A réclame já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre ele e a sua obra, a vitória estava certa. Era difícil encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em coisas francesas... Pensou num jornal, O Violão, em que ele desafiasse o rival e o esmagasse numa polêmica.

      Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma, atualmente recolhido ao hospício, mas felizmente em via de cura, A sua alegria foi justamente quando soube que o amigo estava melhor.

      — Não pude ir hoje, disse ele, mas irei domingo. Está mais gordo?

      — Pouca coisa, disse a moça.

      — Conversou bem, acrescentou Coleoni. Até ficou contente quando soube que Olga ia casar-se.

      — Vai casar-se, Dona Olga? Parabéns.

      — Obrigada, fez ela.

      — Quando é, Olga? perguntou Dona Adelaide.

      — Lá para o fim do ano... Tem tempo...


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