O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton

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O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton


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Especulou-se muito sobre se se representará finalmente ou não. Receio que o herr Csokor tenha de viver sempre com a mala feita. Mas disseram-me que segue em frente, embora com um termo de responsabilidade que garante que o autor não tenciona ofender nenhuma nação do antigo império alemão. Um pouco disto, um pouco daquilo, o que for necessário para sobreviver.

      O pai de Stephan teria dito que aquilo era a Áustria, não a Alemanha. O levantamento nazi fora sufocado há anos. Contudo, Stephan não se importava com a política. Stephan só queria saber quem seria o protagonista da peça.

      — Não queres tentar adivinhar? — sugeriu herr Perger, enquanto virava Stephan para ele na cadeira. — Tens muito jeito, se bem me lembro.

      Stephan manteve os olhos fechados e voltou a tremer involuntariamente, ainda que, por sorte, nenhuma madeixa de cabelo lhe caísse na cara.

      — Werner Krauss? — disse.

      — Aí está, finalmente! — exclamou herr Perger, com um entusiasmo surpreendente.

      O barbeiro virou novamente a cadeira para o espelho e Stephan assustou-se ao ver — impreciso, sem os óculos postos — que herr Perger não se referia à sua resposta, mas falava com uma menina que saíra, como um girassol surreal, da ventilação situada na parede por baixo do seu reflexo. A menina parou à frente dele, com os óculos sujos, as tranças loiras e os seios incipientes.

      — Ai, Žofie-Helene, a tua mãe vai passar a noite inteira a limpar-te esse vestido — queixou-se herr Perger.

      — Não era uma pergunta muito justa, avô Otto, porque há dois protagonistas masculinos — indicou a menina alegremente, com uma voz que fez Stephan tremer, como o primeiro si bemol do Ave Maria de Schubert. A sua voz e o som lírico do seu nome, Žofie-Helene, para além da proximidade dos seus seios…

      — É a lemniscata do Bernoulli — disse ela, tocando num fio de ouro que tinha ao pescoço. — O polinómio X ao quadrado mais E ao quadrado elevado ao quadrado é igual ao produto de X ao quadrado menos E ao quadrado multiplicado por dois A ao quadrado.

      — Eh… — Stephan corou ao perceber que o apanhara a olhar para os seios dela, embora ela não soubesse.

      — O meu pai ofereceu-mo — declarou. — Também gostava de matemática.

      Herr Perger tirou-lhe a capa, entregou-lhe os óculos e não aceitou o cuproníquel, dizendo que, desta vez, não teria de pagar. Stephan voltou a guardar as páginas da peça na mochila, porque não queria que aquela menina a visse. Também não queria que soubesse que tinha uma peça de teatro e que imaginava que conseguiria escrever algo que valesse a pena ler. Parou, confuso: O chão estava totalmente limpo?

      — Stephan, esta é a minha neta — indicou Otto Perger, com a tesoura ainda na mão e a vassoura e a pá sem tocar junto do violoncelo. — Žofie, é possível que o Stephan esteja tão interessado no teatro como tu, embora goste mais de ter o cabelo bem arranjado.

      — É um prazer conhecer-te, Stephan — disse a menina. — Mas não vieste para fazer um corte de cabelo que não precisavas?

      — Žofie-Helene — repreendeu-a herr Perger.

      — Estava a ver-vos enquanto falavam. Não precisavas de cortar o cabelo, portanto, o avô Otto fingiu que to cortava. Mas, espera, não me digas! Deixa-me adivinhar. — Olhou à volta: Para o violoncelo, o bengaleiro, o avô e, novamente, o próprio Stephan. Reparou na mochila. — És ator! E o avô sabe tudo sobre este teatro.

      — Acho que descobrirás em breve, Engelchen, que o Stephan é escritor — indicou Otto Perger. — E deves saber que os grandes escritores fazem coisas muito estranhas só para viverem a experiência.

      Žofie-Helene olhou para Stephan com um interesse renovado.

      — És mesmo escritor?

      — Vão… Vão oferecer-me uma máquina de escrever no Natal — indicou Stephan. — Ou, pelo menos, é o que espero.

      — Fazem máquinas especiais?

      — Especiais?

      — Não é estranho ser canhoto?

      Stephan olhou para as mãos, confuso, enquanto ela voltava a abrir o ralo de onde saíra e entrava na parede de gatas. Segundos depois, voltou a espreitar.

      — Então, anda, Stephan. Os ensaios estão quase a acabar — replicou. — Não te importarás de sujar um pouco essa tua roupa de escritor, pois não? Para viver a experiência.

      RUBIS OU IMITAÇÃO

      Um dos botões de pérolas do punho ornado da luva de Truus soltou-se quando, com o bebé ao colo, tentou agarrar o menino. Estava tão absorta no teto abobadado e imenso de ferro fundido da estação de Amesterdão que quase caiu ao sair do comboio.

      — Truus! — gritou o marido, enquanto dava a mão ao menino e o deixava na plataforma. Também ajudou a menina a sair, assim como Truus e o bebé.

      Já na plataforma, Truus aceitou o abraço do marido, um gesto público pouco frequente.

      — Geertruida — disse —, a frau Freier não podia…?

      — Por favor, não comeces com isso agora, Joop. Está feito e tenho a certeza de que a esposa desse guarda agradável que nos permitiu atravessar a fronteira precisa mais do que nós do rubi da minha mãe. Onde está o teu espírito natalício?

      — Meu Deus, não me digas que te arriscaste a subornar um nazi com uma imitação.

      Deu-lhe um beijo na face.

      — Dado que nem tu és capaz de distinguir a diferença, querido, não acho que algum deles consiga descobrir num futuro próximo.

      Joop riu-se, apesar de tudo. Pegou no bebé ao colo, segurando-o de forma incómoda, embora conseguisse acalmá-lo. Era um homem que adorava crianças, mas que não tinha filhos, apesar de ter passado anos a tentar. Truus pôs as mãos nos bolsos, pois já não tinha o calor do bebé, e apalpou a caixa de fósforos de que se esquecera por completo. Era um tipo estranho, o médico do vagão que lha dera. «Sem dúvida, foi enviada por Deus», dissera, olhando para as crianças com carinho. Dissera que tinha sempre consigo uma pedra da sorte e que queria que ficasse com ela. «Para que a senhora e as crianças estejam a salvo», insistira, abrira a caixinha e mostrara-lhe uma pedra plana muito antiga que não teria nenhum propósito se não fosse uma pedra da sorte. «Nos funerais judeus, as pessoas não oferecem flores, mas pedras», explicara e isso fizera com que fosse impossível rejeitar a oferta. Depois, saíra em Bad Bentheim, antes de o comboio passar da Alemanha para a Holanda e, agora, Truus estava em Amesterdão com as crianças, pensando que talvez houvesse um pouco de verdade naquela história sobre a boa sorte que, supostamente, aquela pedra tão feia concedia.

      — Bom, pequeninho — disse Joop ao bebé —, quando cresceres, terás de fazer algo extraordinário para que o risco da minha esposa louca valha a pena. — Se se preocupava com aquele resgate não planeado, não ia objetar, tal como quando as suas viagens para tirar crianças da Alemanha eram planeadas. Deu um beijo na face do bebé. — Tenho um táxi à espera.

      — Um táxi? Deram-te um aumento no banco enquanto estava fora? — brincou Truus. Joop era banqueiro, frugal até ao extremo, embora continuasse a chamar namorada à esposa depois de duas décadas.

      — Seria uma caminhada grande até casa do teu tio desde a paragem do elétrico, mesmo sem a neve — explicou —, e o doutor Groenveld não quererá que a sobrinha e os sobrinhos do amigo cheguem congelados.

      O amigo do doutor Groenveld. Isso explicava tudo, pensou, enquanto saíam para a rua cheia de árvores cobertas de neve, com caminhos sujos e gelo nos canais. Era assim que costumava distribuir-se grande parte da ajuda do Comité de Interesses Judeus: Sobrinhos de cidadãos holandeses; amigos de amigos; os filhos de amigos de sócios empresariais. Com frequência, as relações acidentais determinavam o destino.


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