O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton

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O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton


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molhados, foram deixando rastos invisíveis na escuridão fria de pedra, enquanto a conversa dos chocolateiros do andar de cima ficava para trás.

      — Hum… Chocolate — comentou ela, sem medo.

      Como teria podido imaginar que uma rapariga tão inteligente como Žofie podia ter medo de alguma coisa, que poderia usar essa desculpa para lhe apertar a mão, tal como Dieter fazia sempre que ensaiavam uma peça nova? O giz apagara-se do sapato de Žofie enquanto corriam à chuva, mas Stephan continuava sem conseguir esquecer todos esses símbolos que escrevera no quadro, matemática que ele nem sequer sabia como se denominava.

      Puxou uma corrente para acender a luz do teto. Entre as sombras, surgiram paletes repletas de caixas encostadas às paredes irregulares de pedra. Só de estar ali, as palavras amontoavam-se na sua mente, embora já raramente escrevesse ali em baixo, agora que tinha a máquina de escrever em casa. Abriu uma caixa com o pé-de-cabra que pendia do gancho situado no poste do último degrau e desatou um dos sacos de juta que havia lá dentro: Grãos de cacau com um cheiro tão familiar que, com frequência, parecia tudo menos chocolate, tal como um rapaz cujo pai escrevia livros poderia acabar por se cansar de ler, por muito impossível que pudesse parecer-lhe.

      — Vais oferecer-me uma dentada — declarou Žofie-Helene.

      — Dos grãos? Não podem comer-se, Žofie. Bom, talvez se estivesses cheia de fome.

      Pareceu tão dececionada que Stephan guardou as palavras com que tencionara impressioná-la: Moldar o chocolate era como coordenar um balé, derretendo, arrefecendo e mexendo para que todos os cristais se alinhassem para deixar o paladar em êxtase. Êxtase. Supunha que, de todos os modos, não conseguiria usar essa palavra com Žofie, a não ser que a escrevesse numa peça.

      Correu pela escada para ir buscar um punhado de trufas e, ao regressar, descobriu que Žofie já não estava lá.

      — Žofie?

      Ouviu a voz Žofie por baixo das escadas.

      — Deviam guardar os grãos de cacau aqui em baixo. A temperatura de uma cave é mais constante quanto mais elevado for o gradiente geotérmico.

      Stephan olhou para a roupa elegante — que escolhera para a impressionar —, mas, mesmo assim, agarrou na lanterna do gancho e pôs-se por baixo das escadas para descer os degraus para a cave inferior. Continuava sem ver Žofie. Baixou-se para entrar no túnel baixo situado no outro extremo da cave e apontou a lanterna para os sapatos de Žofie, para as pernas dobradas e para o rabo por baixo da saia. Estava no fundo do túnel, com o vestido um pouco levantado por causa do movimento, de modo que, por um instante, antes de o tecido deslizar, viu a pele pálida das suas coxas e da parte posterior dos joelhos.

      Žofie voltou a baixar-se para o túnel e o seu rosto ficou iluminado pelo círculo de luz.

      — É um termo novo, o gradiente geotérmico — explicou. — Não faz mal se não o conheceres. Quase ninguém conhece.

      — A câmara superior é mais seca, o que é melhor para o cacau — explicou ele, enquanto a alcançava. — Além disso, é mais fácil pôr e tirar coisas daí.

      Aquela passagem criara-se de forma natural, não como a passagem de cimento construída por baixo da Ringstrasse, junto do Burgtheater. Parecia que acabava num monte de pedras a vários metros de distância, mas não era assim. As coisas funcionavam dessa forma naquele submundo, naquele labirinto de passagens antigas e câmaras que percorria as profundidades de Viena: Havia sempre uma forma de continuar a avançar se se procurasse durante o tempo suficiente. A humidade baixa naquela parte era a razão por que o bisavô comprara o edifício da Chocolates Neuman. Chegara a Viena sem nada quando tinha dezasseis anos, a mesma idade que ele tinha naquele momento, para viver nas águas-furtadas de um edifício sem elevador nos subúrbios de Leopoldstadt. Fundou o negócio do chocolate com vinte e três anos e comprou aquele edifício para o expandir quando ainda vivia nas águas-furtadas, antes de construir o palácio de Ringstrasse, onde a família de Stephan vivia agora.

      — Podia ter esperado até explicares aquela equação aos professores — indicou Stephan.

      — A demonstração? Não é necessário explicar ao professor Gödel. Estabeleceu os teoremas da inclusão que transformaram o campo da lógica e da matemática quando era pouco mais velho do que nós, Stephan. Adorarias as demonstrações dele. Usou o paradoxo de Russell e o paradoxo do mentiroso para demonstrar que, em qualquer sistema formal adequado para a teoria numérica, existe sempre uma fórmula que não pode provar-se e também existe a sua negação.

      Stephen pegou no diário que tinha na mala e escreveu: O paradoxo do mentiroso.

      — Esta mesma frase é falsa — declarou ela. — A frase tem de ser verdadeira ou falsa, não é assim? Mas, se for verdadeira, então, como ela própria diz, é falsa. Mas, se for falsa, então, é verdadeira. Portanto, tem de ser verdadeira e, ao mesmo tempo, falsa. O paradoxo de Russell é ainda mais interessante: O conjunto de todos os conjuntos que não fazem parte de si próprios faz parte de si próprio ou não? Entendes?

      Stephan apagou a lanterna para esconder que entendia muito pouco. Talvez o pai tivesse algum livro de matemática que explicasse o que Žofie estava a dizer. Talvez isso ajudasse.

      — Agora, nem sequer sei onde estás! — exclamou Žofie.

      No entanto, Stephan sabia onde ela estava. Sabia, graças à sua voz, que a sua cara estava a trinta centímetros de distância, que se se inclinasse para a frente, talvez conseguisse beijá-la.

      — Stephan, continuas aí? — perguntou ela, com um pouco do mesmo medo que ele também sentia às vezes quando estava naquele submundo escuro, onde as pessoas poderiam perder-se e não voltar a sair. — Ainda sinto o cheiro do chocolate, mesmo aqui.

      Stephan apalpou as trufas que tinha no bolso e tirou uma.

      — Abre a boca e deita a língua de fora. Assim, poderás saboreá-lo — sugeriu.

      — Não podes.

      — Podes.

      Ouviu que humedecia os lábios e sentiu o cheiro da frescura do seu hálito. Pôs-lhe uma mão no braço, para se localizar ou talvez para a beijar.

      Riu-se, nervosa, um som como o de uma pomba que não era próprio dela.

      — Mantém a boca aberta — pediu, com suavidade, enquanto adiantava a mão, até sentir o calor da sua respiração nos dedos e deixar a trufa na sua língua. — Deixa-a na boca — sussurrou-lhe. — Deixa-a assim, para durar e saboreares cada momento.

      Desejava apertar-lhe a mão, mas como podia apertar a mão a alguém que se transformara tão depressa na sua melhor amiga sem pôr a amizade em risco? Pôs as mãos nos bolsos e voltou a acariciar as trufas. Pegou noutra e pô-la na boca, não porque desejava comer chocolate, mas para partilhar a experiência; a escuridão que os rodeava e o barulho da água mais adiante, produzido pela chuva que entrava através de um ralo e se filtrava pelas profundidades, em direção ao canal, ao rio ou ao mar, enquanto o chocolate derretido lhes aquecia a língua.

      — É verdadeiro e, ao mesmo tempo, falso que posso saboreá-lo — declarou ela. — O paradoxo do chocolate!

      Stephan inclinou-se para a frente, pensando que talvez se arriscasse, que talvez a beijasse e, se se afastasse, fingiria que chocara com ela na escuridão. Contudo, um bicho de algum tipo (certamente, um rato) passou a correr ali perto e Stephan acendeu a lanterna num ato reflexo.

      — Não digas a ninguém que te trouxe aqui — pediu. — Se voltarem a descobrir-me, vão fechar-me para sempre no meu quarto, por causa dos vândalos. Mas não é fantástico? Alguns destes túneis são apenas escoadores, que convém evitar quando chove muito, e outros são esgotos, que evito sempre. Mas há salas inteiras aqui em baixo. Criptas cheias de ossos. Colunas que podiam ser, não sei, da época dos romanos. É uma rede subterrânea usada por espiões e assassinos, habitantes e freiras. É o meu lugar secreto. Nem sequer trago os meus amigos aqui.

      — Nós não somos amigos?


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