Tudo se desmorona. Sheena Kamal

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Tudo se desmorona - Sheena Kamal


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Capítulo 46

       Capítulo 47

       Capítulo 48

       Capítulo 49

       Capítulo 50

       Capítulo 51

       Capítulo 52

       Capítulo 53

       Agradecimentos

       Se gostou deste livro…

      Para a minha mãe

UM

      1

      Quando montaram as primeiras tendas para tratar os viciados que entravam e saíam como mortos vivos, pensei: Claro.

      Quando os jornais começaram a publicar um artigo atrás de outro sobre o vício dos opiáceos que estava a invadir a cidade, pensei algo do género: Não me digam? Não vos escapa nada, meninos.

      Contudo, quando a infraestrutura de saúde mental se obcecou com os zombies, tive de me queixar.

      Ninguém se importou com a minha queixa.

      Com todas estas pessoas viciadas nos viciados, onde é que os assassinos humildes da cidade podem ir procurar ajuda psicológica, questiono-me. Vimo-nos reduzidos a queixar-nos sobre o assunto nas nossas reuniões semanais. Não é que haja grupos de apoio a assassinos em Vancouver. Não quero que fiquem com uma ideia errada. As válvulas de escape alternativas para os homicidas da cidade têm muitas carências. Os terapeutas privados custam um olho da cara, para o dizer de alguma forma, e também não conseguimos encontrar grupos de discussão sobre o assunto na comunidade. O mais próximo que encontrei foi um para pessoas com transtornos alimentares, mas não acho que as pessoas que tenham feito coisas horríveis com o seu apetite consigam entender que matei uma pessoa ou duas no ano passado. Em defesa própria, mas mesmo assim.

      Durante a minha vez, conformo-me com contar aos meus companheiros malucos que me sinto como se estivesse eclipsada pelos meus demónios e eles assentem como se me entendessem. Somos desconhecidos que conhecem os segredos mais profundos uns dos outros, unidos no círculo sagrado de uma sala de reuniões com manchas de urina na zona leste do centro de Vancouver. Levantam os seus braços anémicos para aplaudir com educação e, depois, saímos do círculo. Voltamos a ser desconhecidos, por sorte.

      A sensação de que alguém me observa segue-me desde esse bairro pobre a leste de Vancouver que frequento até à casa elegante de Kitsilano em que, agora, ocupo espaço. Conduzo com as janelas fechadas porque o ar cheira a fumo dos incêndios florestais da costa norte de Vancouver, fumo que chegou até aqui em rajadas pestilentas e se instalou sobre a cidade. Não ajuda que estejamos a viver um desses outubros que não se lembra de que, em teoria, tem de existir uma temporada outonal e que esteja um calor quase insuportável para esta época do ano.

      Enquanto conduzo, obceco-me com mais outra morte. Uma que ainda não teve lugar. Mas terá.

      Em breve.

      2

      Quando chego a casa, Sebastian Crow, o meu antigo chefe e novo companheiro de apartamento, está a dormir no sofá.

      Estico uma mão para tocar nele, mas afasto-a antes que os meus dedos lhe toquem na têmpora. Não quero acordá-lo. Quero que durma assim para sempre. Em paz. Tranquilo. Num lugar onde a palavra que começa por «C» não consegue apanhá-lo. Todos os dias parece encolher-se um pouco mais e o seu espírito cresce mais para compensar a diminuição do espaço físico que ocupa. Está doente e não há nada que eu possa fazer porque é terminal. A minha cadela Whisper e eu mudámo-nos para lhe fazer companhia e para nos certificarmos de que não cai pelas escadas, mas, para além disso, não há esperança. Há um incêndio enorme em que ele parece arder também. O seu corpo virou-se contra ele, mas a sua mente recusa-se a render-se.

      Até acabar o livro.

      Quando me pediu para o ajudar a organizá-lo e revê-lo, não pude dizer que não. Não é possível dizer que não a Sebastian Crow, o jornalista que está a escrever as suas memórias à medida que se aproxima do fim da sua vida. Escreve-as como cartas de amor à falecida mãe e como desculpa ao seu filho, de quem se afastou. Também como uma explicação para o amante que abandonou. O que li do livro é lindo, mas significa que está a passar os seus últimos dias a viver no passado. Porque não há futuro, para ele, não.

      A Whisper empurra-me a mão com o focinho. Está inquieta. Nervosa. Ela também o sente.

      Ponho-lhe a trela, porque não confio nela com este humor, e dirigimo-nos para o parque da frente. Há lá um homem que tenta sempre acariciá-la, portanto, mantemo-nos afastadas dele num espírito de generosidade para as suas mãos. No outro extremo do parque, há um caminho que percorre a costa. Mesmo aqui, ainda vemos o fumo de uns incêndios invisíveis. Nem sequer a brisa marinha consegue dissipá-lo. Andamos, ambas as inquietas, até darmos a volta ao parque. Sento-me num banco com a Whisper bem perto.

      O homem que me observava passa à minha frente.

      — Está uma noite bonita para espiar os outros — comento. — Não te parece?

      O homem para. Olha para mim. Abre a boca, talvez para dizer uma mentira, mas volta a fechá-la. Estou de costas para o candeeiro que ilumina insuficientemente esta parte do parque. A Whisper e eu somos apenas duas sombras escuras para ele, mas ele aparece iluminado por completo. Tem o casaco aberto e, no colarinho, tem uma franja de pele com manchas que vai desde o queixo até à clavícula. Parece que tentou fazer crescer pele nova nessa zona, mas parou a meio caminho, deixando uma marca inacabada. É um homem idoso, mas custa-me a calcular a idade. Seja qual for, usou os seus anos para aprender a vestir-se bem. Casaco elegante. Bons sapatos. Não condiz. Um homem que cuida da sua aparência e passa as noites sentado num parque a seguir mulheres enquanto passeiam os seus cães.

      Esperamos num silêncio incómodo, os três. A Whisper boceja e passa a língua pelos caninos afiados para acelerar as coisas. O homem interpreta-o como a ameaça que, sem dúvida, é.

      — A tua irmã disse-me onde podia encontrar-te — admite, finalmente.

      Se acha que isso vai tranquilizar-me, engana-se muito. Lorelei não fala comigo desde o ano passado, desde que roubei o carro do marido dela, o tirei da estrada e o despenhei por uma ravina.

      Mas decido fazer o que ele quer.

      — O que queres?

      — Não sei — responde, com um sorriso triste. — Suponho que recordar os velhos tempos nos meus últimos anos.

      — E o que é que isso tem a ver comigo?

      — Conheci o teu pai. — Ainda bem que tem uma voz suave, porque, pronunciada num decibel mais alto, aquela frase poderia ter feito com que caísse de rabo no chão, se não estivesse já sentada. — Posso sentar-me? — Aponta para o banco. Há algo estranho no seu tom de voz. A sua dicção está demasiado calma para alguém a enfrentar um animal imprevisível. Questiono-me se a cicatriz do pescoço terá alguma coisa a ver com a sua atitude despreocupada. Se será um desses homens tão habituados ao perigo


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