Tudo se desmorona. Sheena Kamal

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Tudo se desmorona - Sheena Kamal


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Do Líbano. Sabes que servimos com os marines lá, não é?

      Ignoro-o porque não sabia, mas, certamente, não lhe diz respeito.

      — Isso não explica porque me segues.

      Passa uma mão pela cara e para as pontas dos dedos na cicatriz. Observa que olho para lá.

      — Do Líbano. Uma explosão. — Pondera cuidadosamente as palavras seguintes antes de falar. — Disse que viria ver-te se acontecesse alguma coisa.

      Rio-me.

      — Chegas várias décadas atrasado.

      — Não sou um bom amigo. Olha, agora, estou reformado e tinha de viajar para o Canadá. Pensei em passar por cá para te ver. Já vim ver a tua irmã e a ti quando morreu, há muitos anos, mas, então, estavam com a vossa tia e tudo parecia em ordem. Há alguns dias, consegui localizar a tua irmã. Não parecia muito contente contigo…

      — Não tem de estar. — Lorelei e eu não nos tínhamos despedido de forma amistosa. No entanto, mantivera o seu apelido de solteira quando se casara e tinha muita presença online. Não seria difícil de encontrar se alguém se incomodasse em procurá-la.

      — Disse-lhe que éramos velhos amigos. Demorei a convencê-la, mas disse-me que conseguiria encontrar-te através do Sebastian Crow. E aqui estou.

      — Mas porquê?

      Fica nervoso, tira um cigarro do casaco e acende-o. Mantém o olhar fixo na chama do isqueiro.

      — Alguma vez fizeste uma promessa que não cumpriste? Fiz muitas coisas más na vida, mas o que aconteceu ao teu pai, no fim… Nunca pensei que o que lhe aconteceu estava bem. Sabia que tinha sofrido depois do problema no Líbano, mas meu Deus. Que pena!

      Olha para a minha mão e vê que tenho os dedos agarrados à trela da Whisper com tanta força que as unhas se cravam na palma, deixando marcas em forma de meia-lua.

      — Não sei o que estou a fazer aqui — admite. Ainda não levou o cigarro à boca e não parece ter intenção de o fumar.

      No ano passado, quase morri afogada. Não me lembro muito daquilo, só que devo ter desmaiado em algum momento. Qualquer mergulhador sabe que, na última etapa da narcose de nitrogénio, a hipoxia chega ao cérebro. Pode causar uma incapacidade neurológica. Com frequência, o julgamento e o raciocínio são afetados, pelo menos, naquele momento. Mas também pode ser agradável, a falta de oxigénio. Quente. Até segura.

      Pode fazer com que alucinemos.

      Interrogo-me se estarei a experimentar um efeito colateral a longo prazo causado por ter estado prestes a afogar-me. Porque antes percebia quando as pessoas mentiam, quase com certeza. Contudo, agora, não tenho a certeza. Depois dos acontecimentos do ano passado, quando a minha filha desapareceu, a rapariga que tinha dado para adoção sem pensar duas vezes, vejo as pessoas de um modo diferente. Talvez seja o meu instinto maternal preguiçoso, que me tolda os sentidos. Ou talvez tenha perdido a minha magia. Porque, ao dizer-me que não sabe o que faz aqui, acredito. Acho que fazemos coisas que não têm sentido. Nem sequer para nós próprios.

      Também é possível que esteja a ser vítima das minhas próprias alucinações.

      Estou tão confusa que não digo nada em resposta. O veterano de guerra parece tão inquieto como eu. Fico a olhar fixamente para ele até se afastar, para o oceano, e desaparecer na noite densa. Então, esfrego as mãos para recuperar o toque. Tenho os pensamentos emaranhados, mas um deles solta-se do matagal.

      Não é apenas a surpresa de alguém vir procurar-me depois de tantos anos. Nem sequer é o facto de sentir a necessidade de me seguir na escuridão para se certificar de que estou bem. É mais do que isso e tem a ver com as coisas que não sabia sobre o meu pai. Que houve problemas no Líbano. Com o meu pai.

      O meu pai teve problemas no Líbano e, alguns anos depois, rebentou os miolos.

      3

      Ao longe, no espaço sideral, uma estrela chamada KIC 8462852 brilha por alguma razão desconhecida, enquanto na Terra, um ex-polícia, ex-agente de segurança, ex-marido e ex-jogador de bowling amador faz um ar de nojo ao pegar num copo de sumo de espinafre, com a esperança de que os seus órgãos internos prestem atenção ao esforço que está a fazer por eles.

      Esta estrela em particular confundiu cientistas de todo o mundo com o seu brilho constante, enquanto Jon Brazuca se confunde a si próprio com a sua nova determinação de ser mais amável com o seu corpo. Herdou a baixa autoestima da mãe fraca e do pai de queixo afundado, que se desculpou durante toda a sua vida e até nos seus anos de reforma.

      Mas Brazuca superou-o. Esse círculo humilhante de «lamento» e «peço desculpa» acabaria com ele.

      Virou a página e misturou-a com um smoothie.

      O sol do fim da tarde já está muito perto do horizonte e ele está cheio de clorofila e alegria. Brazuca sempre esteve mais desperto de noite, mais vivo e, agora, recorreu à astronomia para preencher os vazios. Não é um homem de ciência, mas desejaria ser. Uma vez, a mãe levou-o a Espanha quando era criança, às falésias de Famara e, juntos, observaram as estrelas refletidas nas poças de água da praia.

      Ao pensar nisso, deseja uma época mais simples, quando as mulheres que satisfazia com tanta generosidade não o drogavam e o prendiam a uma cama, abandonando-o depois para ser descoberto pelas empregadas do hotel. E foi algo que realmente aconteceu há mais ou menos um ano. Nora Watts, a mulher com quem fora às reuniões dos Alcoólicos Anónimos, a mulher que perdera uma filha que nem sequer queria, a mulher que se sentia obrigado a ajudar sem nenhuma razão que tivesse sentido para ele… Abandonara-o, bêbado e drogado. Dera-lhe um coquetel de álcool e sedativos que o deixara a dormir e dera a pequena sacudidela ao seu corpo que desejava há tanto tempo.

      E demorou meses a voltar a perder o vício.

      Brazuca está no terraço do seu apartamento no leste de Vancouver e olha para o céu, em direção à estrela brilhante sobre a qual leu numa revista. Por um instante, sente uma certa afinidade com o universo. Acaba o sumo e arrota, satisfeito.

      O seu amigo Bernard Lam pediu-lhe para o visitar e, pela primeira vez na sua vida, tem vontade de se dar com um multimilionário.

      — Brazuca — diz Lam, à porta da sua mansão imponente em Point Grey. Se há uma crise imobiliária em Vancouver, pode ser porque grande parte do espaço está ocupado apenas por esta única propriedade. Tem uma ala este e uma ala oeste e cerca de vinte divisões pelo meio. Há campos de jogos exteriores para qualquer desporto e um campo de minigolfe. Se se cansar da piscina de água salgada, há outra de água doce do outro lado da propriedade.

      Bernard Lam, o playboy filho de um empresário rico e filantropo, faz-lhe um gesto e Brazuca segue-o para o interior da moradia. O seu encanto famoso não está à vista. A sua atitude é áspera e taciturna enquanto o leva por um corredor comprido cheio de fotografias de família emolduradas na parede e fotografias mais recentes de Lam e da esposa, até chegar a um escritório.

      — O que se passa? — pergunta Brazuca, assim que a porta se fecha atrás dele.

      — Um instante. — Lam aproxima-se do seu portátil, situado na secretária. Junto dele, há uma garrafa de uísque escocês, mas não há fotografias. É uma zona livre de família. Vira o ecrã para ele.

      — É linda — comenta, ao ver a mulher que aparece no computador de Lam. Na fotografia, usa um vestido de verão e está num iate, a rir-se para a máquina fotográfica. É alta e voluptuosa, com um cabelo escuro e lustroso e uns olhos brilhantes.

      — Chamava-se Clementine. Era o amor da minha vida.

      Não há sumo de espinafre que possa travar a dor de cabeça que Brazuca começa a sentir nas têmporas quando Lam usa o tempo passado. A mulher da fotografia não é a mulher que aparece nas paredes da sua casa. Portanto, o amor da sua vida não era a nova esposa.

      —


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