Tudo se desmorona. Sheena Kamal

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Tudo se desmorona - Sheena Kamal


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Não vais levar a Whisper contigo? — pergunta-me, com o sobrolho franzido. — Sabes? Tanto faz. Não preciso de saber.

      Passo junto dele, com cuidado para evitar que os nossos corpos toquem um no outro por acidente. Da última vez que tocámos um no outro, tinha-me sentado em cima dele e tinha-lhe deitado álcool pela garganta, sabendo perfeitamente que é alcoólico. Nunca lhe pedi perdão por isso. Nem o farei. Antes dos acontecimentos do ano passado, era capaz de distinguir as mentiras, com todos, menos com Brazuca. As suas mentiras foram as que mais me magoaram porque não as vi vir. Talvez não quisesse fazê-lo. Não voltarei a cometer esse erro.

      — O Krushnik não vai gostar disto — comenta, quando chego à porta.

      — Podes dizer-lhe, se quiseres.

      Mas ambos sabemos que não o fará. Esse não é o nosso segredo. Leo acabará por descobrir e teremos de o enfrentar quando chegar o momento. Por enquanto, acedemos a manter o silêncio. Outro acordo ilícito, outro homem. Ultimamente, parece que os acumulo.

      Penso em perguntar uma coisa, porque sei que é muito observador.

      — Viste alguém a vigiar o edifício quando entraste? Alguém que te tenha causado desconfiança.

      — Estamos na parte leste da cidade. Todos me causam desconfiança — declara, olhando para mim como olharia para um louco. E a zona leste de Vancouver é a zona de reunião para os loucos. Para mim também. Os desamparados, os viciados, as pessoas com demónios. Todos nos refugiamos aqui porque, com frequência, é o único lugar que nos aceita.

      Assinto com a cabeça. Os seus poderes de observação não dão para tanto.

      Enquanto regresso ao carro, vejo um grupo de pessoas em torno de um corpo estendido na rua. Não consigo evitar fixar-me nas suas caras para ver se o veterano está entre elas. Não está, portanto, viro-me para o espetáculo. Há um homem de cócoras junto de uma mulher, a falar em voz baixa. A mulher está inconsciente. Tira uma agulha intramuscular de um kit que tem ao lado e extrai uma dose de líquido de um frasco. Então, crava-lha na coxa. Alguém dá um grito entre a multidão. Será alguém que não é daqui, porque isto é o dia a dia desta zona. Não espero para ver se a mulher do chão acorda com a injeção de naloxona. Já há cidadãos preocupados suficientes em redor e, além disso, já tenho muitos problemas.

      Quando regresso à casa, Seb está no seu escritório com a cabeça apoiada na secretária e a Whisper aos seus pés, a olhar para mim com olhos acusadores. Por um instante, o coração para, mas, então, ouço Seb a ofegar. Não sou uma mulher grande, mas levantá-lo não é um esforço grande. É como um monte de ossos nos meus braços, presos apenas por tecidos conectivos frágeis e músculos fracos. Deixo-o com suavidade no sofá e ocupo o meu lugar na poltrona.

      Leo levou tudo menos os livros. Se soubesse como Seb precisava deles, também os teria levado. Porém, não o fez, portanto, continuam aqui e, quando Seb se sente bem, enumeramo-los enquanto revemos as suas memórias. Fala e escreve enquanto eu ouço e tomo as minhas próprias notas ou escrevo quando ele não tem forças. Só trabalhamos nesta sala e deixamos toda a nossa bagagem extra à porta. Todos precisam de um lugar sagrado e este pertence aos três. Protegidos pelos livros maltratados que significaram alguma coisa para ele ao longo da sua vida.

      Eu não sou uma académica, mas os livros de Seb foram uma revelação para mim. Nada me comove como a poesia de Césaire, o escritor político das colónias francesas que falava da rejeição das pessoas a desafiar a sua visão do mundo. Era fácil separar as ideias, como assustar uma mosca.

      Na semana passada, antes de chegar o fumo dos incêndios do norte, levei a Whisper às rochas que dão para o oceano. Tínhamos tempo para matar enquanto Seb estava no hospital. Ficámos lá durante um bom bocado, o suficiente para ver o ciclo da vida à nossa frente. Mesmo por cima da superfície da água, no fundo do meu campo de visão, duas aves de rapina rodeavam um ponto concreto da água. De vez em quando, uma das duas mergulhava. Chamavam-se uma à outra e, quanto mais tempo passava, mais fechados eram os círculos. Eu percebia o que viam. Que a criatura da água, um pato desorientado, talvez estivesse cada vez mais cansada. Os seus reflexos eram cada vez mais lentos. No fim, aconteceria o inevitável.

      Recordou-me que o desastre se precipita e ataca quando uma criatura está mais fraca.

      Sozinha, com duas bocas famintas para alimentar e com a certeza de que o amor de uma mulher é algo poderoso, mas não tão poderoso como o vazio que deixa quando se vai embora. Até aparecer esse veterano de guerra, cujo nome nem sequer me ocorreu perguntar, pensava que o meu pai simplesmente não tinha conseguido aguentar a pressão.

      No entanto, agora, penso em Césaire e uma suspeita aloja-se na minha mente. Como bem disse, a ideia é como uma mosca incómoda. A zumbir-me no ouvido. Diz-me que há algo mais por trás da morte do meu pai do que me tinha permitido pensar. Altera a minha visão do mundo.

      7

      Brazuca vê-se imediatamente obrigado a reconsiderar os seus preconceitos pelas mulheres sustentadas quando entra no apartamento de Clementine. Não é o bordel que imaginara. Não tem nada de frívolo, para além do preço de viver num apartamento com vista para English Bay. Tem um ambiente acolhedor e caloroso e, embora os móveis não sejam baratos, também não são ostentosos. Alguém com muito bom gosto transformou este lugar num lar.

      A luz suave da tarde penetra na sala, onde Brazuca encontra uma fotografia emoldurada de Lam a rodear Clementine com os braços. Estão a observar as águas de Deep Cove, a norte de Vancouver, onde se juntam Burrard Inlet e o fiorde de Indian Arm. Brazuca nunca viu Lam tão feliz como nessa fotografia, sorrindo contra o cabelo de Clementine.

      Ouve um barulho no interior do apartamento. Afasta-se da fotografia, passa à frente da cozinha elegante e para à porta do quarto.

      — Está aí alguém?

      Uma jovem chinesa olha para ele, afasta uma madeixa de cabelo da testa e apanha-a num coque descuidado. Tem um fato de treino com o logótipo da Universidade de British Columbia e está sentada no chão rodeada de montes de roupa, sapatos e malas, com aspeto de estar totalmente perdida.

      O que lhe chama a atenção é que não parece especialmente surpreendida por ver um desconhecido ali. Também não parece preocupada com a sua segurança. Entreolham-se durante uns segundos e, depois, a mulher aponta para as malas. «Sabes quanto custa normalmente uma mala de marca?», pergunta, finalmente. «Claro que não sabes. Imagino pela tua forma de vestir. Não és um dos namorados habituais da minha irmã.»

      Brazuca acha graça, apesar de tudo. Cruza os braços e apoia-se na ombreira da porta.

      — Milhares de dólares — continua ela. — Deve haver malas no valor de cinquenta mil dólares só nesta divisão, pelo menos. O que vou fazer com estas coisas?

      — Devíamos unir os nossos recursos e vendê-las juntos. Ambos seríamos ricos.

      — Estas etiquetas vendem-se sozinhas. E não tenho a certeza com o que poderias contribuir, sejas quem fores.

      — Jon Brazuca — apresenta-se e decide não estender a mão. O olhar desconfiado da mulher indica que deve ficar onde está. — Um amigo da Clementine pediu-me para passar por cá.

      A mulher fica a olhar para ele e ele sente-se tentado a recuar ao ver a raiva súbita na sua expressão. Levanta-se.

      — Referes-te ao Bernard Lam? Ela morre de overdose e ele fica furioso, não é? O seu brinquedo morreu.

      — Não acho que a Clementine fosse um brinquedo para ele.

      — Vamos deixar uma coisa clara — replica a mulher, apontando-lhe para o peito com um dedo. — Não sei porque queria que a chamassem por esse nome horrível de stripper, mas o seu nome era Cecily Chan. Estudava Literatura Inglesa na universidade antes de parar para ser modelo. Era uma pessoa, com uma família que a amava.

      Brazuca levanta uma mão em gesto de paz. Tinha uma tia-avó chamada Cecily e entende


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