Tudo se desmorona. Sheena Kamal

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Tudo se desmorona - Sheena Kamal


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mais do que ele ganha num mês.

      — Lamento muito. Estou fora de mim. Não suporto isto. A minha irmã morreu e a única coisa que deixou para trás foi um punhado de merda muito caro que tenho de administrar agora.

      Vai à cozinha e liga o fervedor de água. Poucos minutos mais tarde, vai atrás dele com uma caixa de cartão cheia de malas de marca e deixa-a cair junto de uma pilha de caixas que já estão na sala. Depois, tira um saquinho de chá de um armário a que mal chega. Juntos, fazem uma chaleira de chá de jasmim muito aromático e sentam-se à mesa da sala de jantar que dá para a baía.

      A divisão vai escurecendo enquanto o sol se põe por cima da água, mas nenhum dos dois se incomoda em fechar as cortinas ou acender as luzes. Às vezes, Brazuca recorda como esta cidade é bonita. Porque escolheu viver aqui. Está tão perdido nos seus pensamentos que demora uns segundos a perceber que a mulher o observa fixamente. Já deve estar assim há um bom bocado.

      — Sou a Grace — apresenta-se.

      — Grace. Tens alguém que possa vir ajudar-te com as coisas da Cecily?

      — Não, a verdade é que não.

      — Os teus pais, talvez?

      Abana a cabeça.

      — Como se alguma vez fossem pôr um pé aqui. Os nossos pais e ela tiveram uma discussão há alguns anos. Ela disse que desejaria que estivessem mortos. Disseram-lhe que poderiam estar mortos para ela, se fosse o que queria. Depois, foi-se embora e nunca mais voltaram a falar. Recusaram-se a vir à missa quando morreu porque esse imbecil a pagou. Só apareceram alguns primos e eu. No fim, não acho que a minha irmã tivesse muitos amigos.

      Brazuca observa as caixas de cartão empilhadas na sala.

      — Bom, está bem, talvez possa ajudar-te a levar algumas destas coisas. Onde vives?

      — Vivemos em Richmond… Oh, não me olhes assim!

      — Assim como?

      Tem a chávena apertada com as mãos com tanta força que parece empenhada em parti-la. Há uma raiva súbita nela, talvez porque a irmã morreu ou talvez porque tem de ser ela a limpar o desastre.

      — Como se todos conduzíssemos um desportivo, recebêssemos aulas de violino e vivêssemos em Richmond. Como se estivéssemos a invadir a vossa maldita cidade. A família da minha mãe está aqui desde que os chineses vieram construir a ferrovia há cem anos e o meu pai mudou-se para cá do continente quando era uma criança. Ambos são engenheiros. Não é que tenhamos chegado a comprar propriedades à frente dos vossos narizes. Temos raízes aqui. Estou a estudar para ser urbanista.

      Brazuca não devia surpreender-se por ela ficar à defesa. O preço das casas está tão alto que muitos culpam a afluência dos chineses pelos preços astronómicos do mercado. Mais de metade da população da cidade de Richmond é imigrante e há certas pessoas que se sentem incomodadas com a mudança demográfica. É uma espécie de racismo insidioso que Brazuca observa cada vez com mais frequência e começa a vê-lo agora através dos olhos desta mulher. De repente, sente ternura por ela. Estica o braço e cobre-lhe as mãos com as suas.

      — Não disse que a tua família não pertence a este lugar. Lamento muito o que aconteceu à tua irmã.

      — A minha irmã… Deixou-se comprar e pagar. — Agarra-lhe as mãos e entrelaça os dedos com os dele. Faz uma pausa, mas não há lágrimas nos seus olhos. — Trabalhas com o Lam, não é? Sabes como são essas mulheres?

      Há algo inquietante na sua maneira de olhar para ele. Brazuca afasta as mãos, mas não sabe onde as pôr, portanto, põe-nas nos bolsos.

      — Às vezes, ajudo-o com alguns problemas. Antes… era polícia.

      — Mas já não és.

      — Não.

      Grace dá a volta à mesa e afasta a chávena de Brazuca. Então, senta-se no seu colo.

      — Grace… O que estás a fazer? — pergunta ele, sem saber se terá força de vontade para afastar uma mulher excitada e triste.

      — Quero… Quero sentir-me como ela se sentia. Só por uma noite — confessa. E aproxima a boca da dele.

      Brazuca não tem força de vontade, afinal de contas.

      Não foi uma proposta sensual, pensa Brazuca, muito mais tarde, quando jazem os dois enredados na cama da irmã. Embora, claro, as suas propostas não costumem sê-lo. Tem o dom de atrair mulheres que não estão interessadas na suavidade. Ter virado a página não parece estar a ajudar muito, nem sequer nisso. Jazem na cama, às escuras, durante um bom bocado. Brazuca não sabe se a fez sentir-se como uma prostituta, mas ele, certamente, sente-se assim. Há tanto silêncio no quarto de Clementine que ambos se apercebem do som da chave ao virar na fechadura. Brazuca olha para Grace nos olhos e leva um dedo aos lábios. Levanta-se e veste as calças de ganga. Ouve barulho atrás dele enquanto Grace se veste.

      Sai sem fazer barulho para o corredor e para na entrada da sala.

      Não sabe o que espera encontrar lá, mas, certamente, não uma mulher minúscula com um fato justo. Está de pé no meio da sala, levantando um telemóvel no ar. Está a olhar para as caixas empilhadas num lado da sala. Observa-a da porta, com Grace a mexer-se pelo corredor, enquanto a mulher se aproxima da caixa das malas de marca e rebusca nela. O cabelo escuro é tão comprido e lustroso que, embora Brazuca não esteja muito familiarizado com as extensões capilares, está bastante certo de que aquela mulher as usa. Finalmente, a mulher tira um pequeno telemóvel que vibra de uma das malas e finaliza a chamada que está a fazer do seu próprio telemóvel.

      — Deves ser a traficante — conclui Brazuca.

      A mulher para. Olha para ele e não diz nada. Ele percebe a raiva de Grace atrás dele.

      Aponta com a cabeça para o telemóvel que tirou da mala, que é descartável, dos que se encontram com facilidade e nos quais pode pôr-se qualquer cartão SIM.

      — Usavas um telemóvel especial para te comunicar com ela. Mantinhas o teu número separado dos seus outros contactos. Muito inteligente.

      A mulher volta a guardar o telemóvel na mala. Quando fala, a sua voz é agradável e infantil. Tem um sorriso retorcido que é estranhamente encantador.

      — Oh, assim é tudo mais limpo.

      Essa é a razão por que ele veio ao apartamento. Questionava-se porque não encontrava registos do traficante de Clem no telemóvel que Lam lhe dera. Clementine tinha uma vida muito isolada, mas tinha de receber a sua dose de algum lado.

      Grace espreita pela ombreira da porta.

      — Ordinária!

      A mulher observa a sua cara. É tão minúscula e sorri com tanta doçura que Brazuca quer acreditar que é mais jovem do que deve ser. No entanto, como tem um olhar calculista, supõe que deve ter pelo menos mais dez anos do que pensara ao princípio.

      — Nisso, não te enganas, querida — diz a Grace, antes de olhar novamente para ele. — Provavelmente, o Bernie pediu-te para vires procurar-me, não foi?

      — Como sabes? — Brazuca não imagina ninguém a chamar «Bernie» a Lam, pelo menos, não na cara. Lam é um playboy, mas há certas coisas que nem sequer ele suportaria.

      — Oh, eu sei tudo sobre o Bernie — continua a mulher, abanando uma mão com unhas feitas na manicura. — Tu deves ser o Bazooka. A Clem falava de ti de vez em quando, mas só porque deve ter ouvido o Bernie a falar de ti. Não tinha vida própria.

      Ele assente. Bazooka. É uma alcunha de que não consegue livrar-se.

      — E tu és?

      — A Priya — sussurra. — Não tem sentido continuar a escondê-lo. Se deres a minha descrição ao Bernie, saberá que sou eu. Fui eu que os apresentei, sabes?

      — O Lam e a Clementine?

      —


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