Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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Responde pois e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde. Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos êxtases duma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual,

      Amaro."

      Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da batina foi à Rua da Misericórdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natário, discutindo.

      — Quem está por cá? - perguntou à Ruça, que alumiava, encolhida no seu xale.

      —.As senhoras todas. Está o Sr, padre Brito.

      — Olá! Bela sociedade!

      Galgou os degraus, e à porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros, tirando alto o chapéu:

      — Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.

      Natário, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:

      — Então que lhe parece?

      — O quê? perguntou Amaro. E reparando no silêncio, nos olhos cravados nele: - O que é? Alguma coisa de novo?

      — Pois não leu, senhor pároco? exclamaram. Não leu o Di strito!?

      Era papel em que ele não pusera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:

      — Ai! é um desaforo!

      — Ai! é um escândalo, senhor pároco!

      Natário com as mãos enterradas nas algibeiras contemplava o pároco com um sorrizinho sarcástico, saltando dentre os dentes:

      — Não leu! Não leu! Então que fez?

      Amaro reparava, já aterrado, na palidez de Amélia, nos seus olhos muito vermelhos. E enfim o cônego erguendo-se pesadamente:

      — Amigo pároco, dão-nos uma desanda...

      — Ora essa! exclamou Amaro.

      — Tesa!

      O senhor cônego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram.

      — Leia, Dias, leia, acudiu Natário. Leia, para saborearmos!

      A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cônego Dias acomodou- se à mesa, desdobrou o jornal, pôs os óculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.

      O princípio não interessava: eram períodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos fariseus a crucificação de Jesus: - "Por que o matásteis? (exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era", etc. O liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvário: - "Ei-lo pendente da cruz, traspassado de lanças, a sua túnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E, voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: - " Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradação hábil, o liberal descia de Jerusalém a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemo-los nós; Leiria está cheia deles, e vamos apresentá-los aos leitores..."

      — Agora é que elas começam, disse o cônego olhando para todos em redor, por cima dos óculos.

      Com efeito "elas começavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de fotografias eclesiásticas: a primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua égua castanha..."

      — Até a cor da égua! murmurou com uma indignação piedosa a Sra. D. Maria da Assunção.

      "... Estúpido como um melão, sem sequer saber latim..."

      O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.

      "... Espécie de caceteiro", continuava o cônego, que lia aquelas frases cruéis com uma tranquilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar à ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinéia a própria e legítima esposa do seu regedor..."

      O padre Brito não se dominou:

      — Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na cadeira.

      — Escute, homem, disse Natário.

      — Qual escute! O que é, é que o racho!

      Mas se ele não sabia quem era o liberal!

      — Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!

      A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.

      Lembraram-lhe o dever cristão de perdoar as injúrias! A S. Joaneira com unção citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.

      — Qual Cristo, qual cabaça! gritou Brito apoplético.

      Aquela impiedade criou um terror.

      — Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irmã do cônego, recuando a cadeira.

      O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:

      — Nossa Senhora das Dores, que até pode cair um raio!

      E, vendo mesmo Amélia indignada, o padre Amaro disse gravemente:

      — Brito, realmente você excedeu-se.

      — Pois se estão a puxar por mim!...

      — Homem, ninguém puxou por você, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo: - Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfêmia má, o reverendo padre Scomelli recomenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e água.

      O padre Brito resmungava.

      — Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!

      Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:

      "...Conheceis um outro com cara de furão?..."

      Olhares de lado fixaram o padre Natário.

      "...Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga; as suas intrigas trazem o cabido numa confusão porque é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito dado à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro."

      — Homem, essa! exclamou Amaro.

      — É para que você veja, disse Natário erguendo-se lívido. Que lhe parece? Você sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois, senhores, até vem com isto! - E com um sorriso macilento, de fel: - Mas amanhã hei-de saber quem é! Olaré! Eu hei-de saber quem é!

      — Deite ao desprezo, Sr. padre Natário, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira pacificadora.

      — Obrigado, minha senhora, acudiu Natário curvando-se com uma ironia rancorosa, obrigado! Cá recebi!

      Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com ódio:

      "...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."

      — Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.

      O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:

      — Você pensa que


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