Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém lhe pede a sua opinião!

      — Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!

      — Então! então! disseram em roda, acalmando-a.

      — Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe caiam os dentes postiços!

      — Seu malcriado!

      Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.

      Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:

      — Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!

      Amélia mandava buscar água de flor de laranja.

      — Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!

      Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.

      — E verá que dose! disse Natário.

      O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:

      "... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"

      — Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.

      "... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres arrastá-la aos lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável família? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a desviares do caminho da honra; condenas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe preparando um horroroso futuro de lágrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos da tua criminosa lascívia..."

      — Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.

      "...Mas acautela-te, presbítero perverso!" E a voz do cônego tinha tons cavos ao soltar aquelas apóstrofes. "Já o arcanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cúmplices, já a opinião da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infâmia. Tremei, sectários do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"

      — De escacha! fez o cônego suado, dobrando a Voz do Distrito.

      O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lágrimas de raiva: passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:

      — Eu, colegas, nem sei o que hei-de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calúnia das calúnias.

      — Uma calúnia infame... rosnaram.

      — E a mim, o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos à autoridade!

      — É o que eu tinha dito, acudiu Natário, é necessário falar ao secretário-geral...

      — Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Autoridade! O que é, é rachá-lo! Eu bebia-lhe o sangue!...

      O cônego, que meditava coçando o queixo, disse então:

      — E você, Natário, é que deve ir ao secretário-geral. Você tem língua, tem lógica...

      — Se os colegas decidem, disse Natário curvando-se, vou. E hei-de- lhas cantar, à autoridade!

      Amaro ficara junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:

      — Ai, filhos, eu não é nada comigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...

      Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cônego imediatamente com uma voz prudente:

      — Colegas, o melhor, diante das senhoras, é não se falar mais nisto. Bem basta o que basta.

      Daí a momentos, apenas Amélia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte dor de cabeça, e despediu-se das senhoras.

      — E sem tomar chá? acudiu a S. Joaneira.

      — Sim, minha senhora, disse ele embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas noites... E você, Natário, apareça amanhã pela Sé à uma hora.

      Apertou a mão de Amélia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e mole, - e saiu com os ombros vergados.

      A S. Joaneira notou, desconsolada:

      — O senhor pároco ia muito pálido...

      O cônego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:

      — Se ia pálido, amanhã estará corado. E agora quero dizer uma coisa. Esse aranzel do jornal é a calúnia das calúnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infâmias. É pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se tagarelou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se fala mais na questão.

      As faces em roda continuavam contristadas. - E então o cônego acrescentou:

      — Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguém, não há necessidade de estar aqui com cara de pêsames. E tu, pequena, senta- te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!

      O secretário-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais expansivos, autor do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava então dirigindo o distrito na ausência do governador civil.

      Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representara de galã no teatro acadêmico, em Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hábito de passear à tarde na Sofia, com o ar fatal com que no palco arrepelava os cabelos, ou levava, nos transes de amor, o lenço aos olhos. Depois em Lisboa arruinara um pequeno patrimônio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita caça no Xafredo e perniciosas convivências literárias: aos trinta anos estava pobre, saturado de mercúrio e autor de vinte folhetins românticos na Civilização: mas tornara- se tão popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a existência, deixou crescer as suíças, começou a citar Bastiat, frequentou as câmaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora à república que tanto exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi era um pilar das instituições.

      Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia às senhoras, nas soirées do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a Novaisitos".

      Levantava-se tarde; e nessa manhã, de robe-de-chambre à mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa - veio dizer que "estava ali um cura".

      — Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfação pessoal: - o Estado não deve fazer esperar a Igreja.

      Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natário que entrava, muito composto, na sua longa batina de lustrina.

      — Uma cadeira, Trindade! Toma uma chávena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hem? Estava justamente pensando em si, - isto é, estava pensando no clero em


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