Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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bem direita, sem medo dos apartes da Arcada, das insinuações da gazeta, das severidades de sua excelência e das picadinhas da consciência! E a sua vida seria feliz. - Não, por Deus! a sua vida não poderia ser feliz sem ela! Tirado à sua existência aquele interesse das visitas à Rua da Misericórdia, os apertozinhos de mão, a esperança de delicias melhores - que lhe restava a ele? Vegetar, como um dos tortulhos nos cantos úmidos da Sé! E ela, ela que o entontecera com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe aparecia outro, bom para marido, com 25$000 por mês! Todos aqueles suspiros, aquelas mudanças de cor - chalaça! Mangara com o senhor pároco!

      O que a odiava! - menos que ao outro porém, o outro que triunfava porque era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabelo todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja triunfantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéias dava patadas furiosas no soalho - que assustavam a Vicência na cozinha

      Depois procurava sossegar, retomar a direção das suas faculdades, aplicá-las todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da Inquisição, e com uma denúncia de irreligião ou de feitiçaria, mandá-los ambos para um cárcere. Ah! nesse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores liberais, tinha de ver aquele miserável escrevente a seis vinténs por dia apoderar-se lhe da rapariga - e ele, sacerdote instruído, que podia ser bispo, que podia ser papa, tinha de vergar os ombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum valor - malditos fossem eles! Queria vê-los cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o último cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriando-se, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...

      Na segunda-feira não se conteve, foi à Rua da Misericórdia. A S. Joaneira estava embaixo na saleta com o cônego Dias. E apenas viu Amaro:

      — Oh! senhor pároco, bem aparecido! Estava a falar em V. Sa ! Já estranhava não o vermos, agora que há alegria em casa.

      — Já sei, já sei, murmurou Amaro pálido.

      — Alguma vez havia de ser, disse o cônego jovialmente. Deus os faça felizes e lhes dê poucos filhos, que a carne está cara.

      Amaro sorriu - escutando em cima o piano.

      Era Amélia que tocava como outrora a valsa dos Dois Mundos; e João Eduardo, muito chegado a ela, voltava as folhas da música.

      — Quem entrou, Ruça? gritou ela, sentindo os passos da rapariga nas escadas.

      — O Sr. padre Amaro.

      Um fluxo de sangue abrasou-lhe o rosto - e o coração batia-lhe tão forte, que ficou um momento com os dedos imóveis sobre e teclado.

      — Não se precisava cá do Sr. padre Amaro, rosnou João Eduardo por entre dentes.

      Amélia mordeu o beiço. Teve ódio ao escrevente: num instante repugnou-lhe a sua voz, os seus modos, a sua figura de pé junto dela: pensou com deleite, como depois de casada (á que tinha de casar) se confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia naquele momento escrúpulos; e quase desejava que o escrevente lhe visse no rosto a paixão que a revolvia.

      — Credo, criatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem me deixa os braços livres para tocar!

      Terminou bruscamente a valsa dos Dois Mundos, começou a cantar o Adeus:

      Ai! adeus! acabaram-se os dias

      Que ditoso vivi a teu lado!

      A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente, - dirigindo o canto, através do soalho, ao coração do pároco, embaixo.

      E o pároco, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé, devorava todos os tons da voz dela - enquanto a S. Joaneira tagarelava, contando as peças de algodão que comprara para lençóis, os arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem juntos...

      — Uma felicidade por aí além, interrompeu o cônego erguendo-se pesadamente. E vamos lá para cima, que isto de noivos não se querem sós...

      — Ah, lá nisso, disse a S. Joaneira rindo, fio-me nele, que é um homem de bem às direitas.

      Amaro, ao subir a escada, tremia - e, mal entrou na sala, o rosto de Amélia, alumiado pelas luzes do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as vésperas do noivado a tivessem embelezado, e a separação lha tornasse mais apetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro ao escrevente, disse baixo, sem os olhar:

      — Os meus parabéns... Os meus parabéns...

      Voltou as costas, e foi conversar com o cônego que se enterrara na sua poltrona, queixando-se de enfastiamento e reclamando o chá.

      Amélia ficara como abstrata, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado. Aquele modo do padre Amaro confirmava a sua idéia: queria a todo o custo descartar-se dela, o ingrato! fazia "como se nada tivesse havido", o vilão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da Arcada, de tudo - sacudia-a da sua imaginação, do seu coração, da sua vida como se sacode um inseto que tem peçonha!... Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o escrevente; roçava-se lhe pelo ombro, rendida, com risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos; depois ela beliscou-o, ele deu um gritinho exagerado. - E a S. Joaneira contemplava-os babosa, enquanto o cônego dormitava já, e o padre Amaro, abandonado a um canto como outrora o escrevente, ia folheando o velho álbum.

      Mas um brusco repique da campainha veio sobressaltá-los todos: passos rápidos galgaram a escada, pararam embaixo na saleta; e a Ruça apareceu dizendo "que era o Sr, padre Natàrio, que não desejava subir, e queria dar uma palavra ao senhor cônego".

      — Fracas horas para embaixadas, rosnou o cônego, arrancando-se com custo ao fundo confortável da poltrona.

      Amélia fechou logo o piano - e a S. Joaneira pousando a meia foi em bicos de pés escutar ao alto da escada: fora ventava forte, e para os lados da Praça afastava-se o toque de retreta.

      Enfim a voz do cônego chamou, de baixo, da porta da saleta:

      — Ó Amaro?

      — Padre-mestre?

      — Venha cá, homem. E diga à senhora que pode vir também.

      A S. Joaneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natàrio enfim descobrira o liberal!

      A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, num velho painel muito escuro - que ultimamente o cônego dera à S. Joaneira - destacava uma face lívida de monge e um osso frontal de caveira.

      O cônego Dias acomodara-se ao canto do canapé, sorvendo refletidamente a pitada: e Natário, que se agitava pela sala, exclamou logo:

      — Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quis subir porque imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas são cá para nós. Estava a começar a dizer ao colega Dias... Tive lá em casa o padre Saldanha. Temo-las boas!

      O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:

      — Coisa que nos toca?

      Natário começou com solenidade erguendo alto o braço:

      — Primo: o colega Brito mudado da freguesia de Amor para ao pé de Alcobaça, para a serra, para o inferno...

      — Que me diz? exclamou a S. Joaneira.

      — Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a meditar o Comunicado do Distrito, mas por fim saiu-se! O pobre Brito lá vai esfogueteado!...

      — Sempre é o que se dizia da mulher do regedor, murmurou a boa senhora.

      — Olá! interrompeu severamente o cônego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de murmuração!... Siga com o seu recado,


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