El ocaso del antiguo régimen en los imperios ibéricos. Margarita Rodríguez
Читать онлайн книгу.temor e expectativa em relação a esse passado, ou, simplesmente, por ele servir de parâmetro de ação. Assim, o passado condiciona o presente em direção a um futuro38. Além disso, essa «experiência» decorre também de condições efetivas de ação política no presente que impõem certas condutas a grupos e sujeitos em relação a outros, direta ou indiretamente. Nesse caso, fronteiras geográficas socialmente ocupadas, fluxos de bens, pessoas e ideias, desempenham papel relevante (Pimenta, 2007; 2012).
Assim, se podemos falar de um «espaço de experiência revolucionário moderno», no qual eventos tão diferentes como a independência das Treze Colônias britânicas, a Revolução Francesa, as independências do Haiti, de cada um dos territórios espanhóis da América e do Brasil cobram sentido uns em relação aos outros (sem que um esteja necessariamente inspirado no outro, ou dando continuidade a ele), poder-se-há falar também em «experiências» específicas, a aproximar esses espaços mais de uns do que de outros, em momentos e por meios particulares.
Precisamente, é de um desses encontros que aqui se trata. O fato do Brasil ter se tornado independente após a maioria das antigas ex-colônias da Espanha na América, e com elas ter podido, efetivamente, «aprender» algo, não o torna excepcional; tampouco a recriação do escravismo, de antigas territorialidades coloniais ou do regime monárquico. Tais elementos também se fizeram presentes em vários dos novos países independentes hispânicos; em contrapartida, conflitos internos, guerras e desagregação territorial não estiveram completamente ausentes do panorama brasileiro. Brasil e Peru estiveram, em muitos momentos de seus processos de independência, próximos, e em um duplo sentido: próximos na mobilização de grupos políticos, de parte a parte, em torno da defesa da monarquia como princípio político ideal para o continente americano; e próximos em termos de suas fronteiras geográficas que, de modo intenso, movimentaram pessoas e ideias em torno das convulsões políticas da época. Parece haver aqui, portanto, um quadrante específico do contexto geral, uma experiência histórica recíproca entre Brasil e Peru como parte de uma experiência revolucionária moderna.
A observação seguirá por dois nichos: o de referências recíprocas a Brasil e Peru, mais particularmente ao mundo político, encontradas em espaços públicos de opinião política, entre 1808 e 1825; e o de contatos de fronteira, que aproximaram geograficamente acontecimentos de parte a parte, além de constituírem territórios comuns. Tal tarefa, ainda que preliminar e indicativa, só pode ser levada adiante porque, felizmente, já dispomos de trabalhos acadêmicos que lhe fornecem boa base empírica39.
2. Em defesa da(s) monarquia(s)
Em suas Memorias de Gobierno, póstumas, o ex-vice rei do Peru, José Fernando de Abascal y Sousa, escreveria que «los anales de la America Meridional presentan como uno de los acontecimientos más notables y acaso como el más peligroso á su existencia Política el de la imprevista traslación de la Real familia de Portugal á sus estados del Brasil». O alarme se justificaria pelo fato do «imprevisto» sucesso ter ocorrido pouco depois das igualmente dignas de nota incursões britânicas ao Rio da Prata, o que teria feito os hispano-americanos temer as consequências da aliança entre Portugal e Grã-Bretanha que acabara de se firmar40. Tal situação, aqui lida por Abascal a posteriori, não era exclusiva de uma autoridade a observar os fatos de seu tempo desde Lima; em várias outras regiões do continente, a presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro foi motivo de atenção e preocupação, criando expectativas que fariam parte de um panorama de incertezas que, doravante, só cresceriam, agravadas pelo subsequente vazio do máximo poder monárquico espanhol41. Aqui, dois elementos merecem destaque: em primeiro lugar, o fato de o Peru possuir ligações diretas com o Rio da Prata, que por seu turno não apenas era a região poucos anos antes atacada por marinheiros em nome da Grã-Bretanha42, mas também aquela da América espanhola mais frequentemente visitada por portugueses do Brasil. Em segundo lugar, porque em meio à crise política que se avizinhava —e que Abascal já conhecia bem ao escrever suas Memorias— o Peru se tornaria um dos principais bastiões da tradicional legitimidade monárquica da América43; contraditoriamente, outro bastião seria, justamente, o Brasil.
Desde então, o que se passava na América espanhola seria acompanhado em detalhes no Brasil, por meio dos poucos periódicos ali existentes, de informes diplomáticos, de correspondências privadas e de notícias, informações e boatos de que eram portadoras pessoas que singravam mares e terras que, mais do que separar, conectavam territórios portugueses e espanhóis. No Brasil, os espaços de recepção e reelaboração de tais conteúdos eram, sem dúvida, limitados, porém encontravam-se em expansão quantitativa e qualitativa. Neles, haveria lugar para um claro desejo de que as convulsões da América espanhola não solapassem os alicerces do poder monárquico espanhol. Desenhava-se, com tal sentimento, uma espécie de solidariedade de cunho realista que uniria portugueses e espanhóis da América, primeiro contra os avanços militares franceses e sua política revolucionária; logo, contra os conteúdos politicamente inovadores fertilizados nos próprios territórios hispano e lusoamericanos.
Em agosto de 1810, por exemplo, a Gazeta do Rio de Janeiro, periódico oficial da Corte portuguesa na América, publicaria a seguinte notícia:
[…] contou uma pessoa, que há pouco chegou de Lima a Cádiz, que os habitantes do Peru por algum tempo tinham sido de opinião diversa acerca da futura forma do seu governo; mas tinham finalmente resolvido manter as suas leis atuais, enquanto a metrópole fosse governada por uma Junta Independente. No caso de ser por fim submetida a Espanha ao poder da França, deliberaria então o povo do Peru a respeito do partido que deverá tomar; mas estava determinado a recusar todas as ofertas que lhe houvesse de fazer Bonaparte44.
A tônica é a mesma de outras notícias a respeito da América espanhola: o que ali era informado confundia-se com uma expectativa de que as coisas fossem, efetivamente, do modo como se informava. Poucos meses depois, a Gaceta del Gobierno de Lima, também um periódico oficial (Peralta Ruiz, 2003), afirmaria, no mesmo tom, que
Por la lectura aunque rapida de dichas gazetas quedamos convencidos de que los asuntos de España y Portugal presentan el aspecto mas lisongero, y que no cabe duda en que el Emperador de los Franceses ha de sentir al fin el haber querido comprender aquellos reynos en su plan de subyugacion universal45.
Desenhava-se, assim, uma convergencia de interesses em torno do combate a um inimigo comum, contra o qual, aliás, agora Espanha e Portugal eram aliados formais: a França e Napoleão Bonaparte46. Logo, tal convergência apontaria para a necessidade de preservação, na América, de uma ordem monárquica, o que, como bem já mostrou a historiografia há tempos, ocorreria também em outras partes do continente47. Os acontecimentos de Brasil e Peru e suas leituras recíprocas se constituiriam em elementos catalisadores de projetos e expectativas polítivas monárquicas em tempos de revolução, tradutores e subsídios a tentativas práticas de ação conservadora. Assim, por exemplo, na correspondência reservada entre o representante português em Cádiz —o futuro Conde de Palmela— e um dos principais homens de Estado portugueses da época, em meio a referências variadas à «grande Tragédia das Américas»48, falava-se de notícias «bastantemente agradáveis» de Lima a respeito de «uma nova vitória conseguida pelo General Goyeneche sobre os Insurgentes de Buenos Aires, em conseqüência da qual as Tropas Peruanas conseguiram a posse das Províncias de Cochabamba e de Potosí»49.
Essa solidariedade esboçada não evoluirá jamais em direção a uma posição absoluta e segura, aliás, bastante improvável em meio a um contexto político tão marcadamente instável e incerto como o vivido na América ibérica daqueles anos. São algumas vozes a se manifestarem —como a do empedernidos realistas Abascal e Palmela— e é nos interstícios de seus discursos que se desenha algo que jamais seria formulado de modo definitivo, mas que constitui fenômeno relevante. Se Napoleão é um inimigo comum, também o poderiam sê-lo, digamos, os «insurgentes de Buenos Aires», como aparecem em uma notícia da Gaceta del Gobierno de Lima, extraído de um jornal londrino (aqui, o fluxo das notícias tece, de modo cristalino, a ampla abrangência dos espaços políticos da época):
Por avisos recibidos por la via del Brasil por un paquete que salió del Rio Janeyro el 27 de Febrero último, sabemos