O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton
Читать онлайн книгу.lugar às gargalhadas. Até à data, aquele continuava a ser o som mais bonito que Truus alguma vez ouvira, mesmo apesar de se ter sentido envergonhada. Como pudera desejar alguma coisa que não fosse a gargalhada daquelas crianças? Como pudera desejar ter alguma coisa para si própria?
Truus parou subitamente o carro da senhora Kramarsky. No chão, junto do alpendre dos Weber, o vaso amarelo estava derrubado, com a terra espalhada pelo caminho. Recuou devagar com o carro, para não levantar pó, e começou a procurar uma saída para atravessar a fronteira através do bosque, repetindo novamente a prece de sempre, agradecendo a Deus por ter os Weber e por tudo o que tinham feito pelas crianças da Alemanha e pedindo ao Senhor para manter aquele casal idoso e valente a salvo.
KLARA VAN LANGE
Na casa dos Groenveld, situada em Jan Luijkenstraat, Truus — cansada depois de passar horas à procura de uma saída no bosque, para acabar por atravessar a quinta dos Weber a meio da noite, com os faróis do carro apagados e o depósito quase vazio — entregou as onze crianças às voluntárias. Klara van Lange, sentada à mesa do telefone com uma daquelas saias novas e horríveis que deixavam a barriga das pernas a descoberto, tapou o auscultador com a mão e sussurrou a Truus: «O hospital judeu de Nieuwe Keizersgracht.» Depois, falou para o auscultador. «Sim, sabemos que onze crianças são muitas, mas será apenas por uma noite ou duas, até encontrarmos famílias para… Se tomaram banho?» Olhou para Truus, nervosa. «Piolhos? Não, claro que não têm piolhos!»
Truus apressou-se a examinar o cabelo das crianças e afastou a mais velha.
— Tem um pente para piolhos, senhora Groenveld? — sussurrou. — Claro que tem. O seu marido é médico.
— Sim, podemos enviar alguém para ajudar a cuidar do bebé — disse Klara, ao telefone. Depois, dirigiu-se a Truus. — Posso ir com eles — sussurrou.
Por muito que Truus gostasse de ir com as crianças, não devia deixar Joop sozinho durante a noite. Devia agradecer a oferta.
— Muito bem, quem quer um banho quente? — perguntou às crianças. Depois, virou-se para as mulheres. — Senhora Groenveld, pode encarregar-se das meninas mais pequenas com a menina Hackman? — Então, dirigiu-se à mais velha de todas. — Se te prepararmos um banho, consegues fazê-lo sozinha?
— Posso ajudar com os piolhos do Benjamin, Tante Truus — ofereceu-se a rapariga.
— Se pudesse escolher uma filha, querida — replicou Truus, acariciando-lhe a face —, seria uma menina tão doce como tu. Poderás desfrutar de um banho quente e agradável só para ti e, além disso, vou procurar uns sais de banho. — Virou-se para Klara, que acabara de desligar o telefone, e disse: — Senhora Van Lange, pode fazer umas sandes de queijo?
— Sim, convenci o hospital judeu a acolher as crianças, apesar de não terem papéis. De nada, senhora Wijsmuller — respondeu Klara, com ironia e fez Truus pensar nela própria quando era jovem, embora muito mais bonita. Klara van Lange não precisava de mostrar a barriga das pernas, seguindo essa nova moda inexplicável para chamar a atenção dos homens. Meu Deus, se não se sentasse com cuidado, ver-lhe-iam os joelhos.
— Claro que os convenceu, Klara — disse. — Nem sequer o primeiro-ministro conseguiria dizer-lhe que não. — Pensou que talvez devessem experimentar as saias de Klara e o seu poder de persuasão com o primeiro-ministro Colijn antes de, segundo os rumores, o governo holandês impossibilitar os estrangeiros de se estabelecer ali, não mediante o fecho literal da fronteira, mas alertando os alemães que fugiam do Reich de que a Holanda poderia ser um lugar de passagem, mas não de destino.
ATRAVÉS DA JANELA, ÀS ESCURAS
Eichmann afastou o relatório que estava a redigir, com o qual Hagen, o seu novo chefe, ficaria com o mérito, se o houvesse. Outro farsante a aproveitar-se da experiência sólida de Eichmann. Abriu a janela e inalou o ar outonal enquanto o comboio atravessava o porto de Itália até à Áustria. Vomitara tanto enquanto atravessavam o Mediterrâneo do Médio Oriente até Brindisi a bordo do Palestina que o médico da enfermaria tentara tirá-lo do barco em Rodes. A viagem inteira fora um fracasso absoluto: Um mês inteiro de viagem para que, no fim, os britânicos só lhes permitissem passar vinte e quatro horas em Haifa e as autoridades do Cairo lhes negassem os vistos para a Palestina. Doze longos dias no Egito, fora a única coisa que tinham conseguido.
— Os judeus defraudam-se uns aos outros, essa é a base do caos financeiro da Palestina.
— Talvez seja mais efetivo dar dados específicos, senhor — replicou Eichmann. — Quarenta banqueiros judeus em Jerusalém.
— Quarenta banqueiros judeus e vigaristas — concordou Hagen. — Claro, outros cinquenta mil judeus emigrariam anualmente com o espólio que o Polkes pensa que devíamos dar-lhes.
Polkes, o único contacto real que tinham feito durante a viagem, sugerira que, se a Alemanha realmente queria livrar-se dos judeus, devia permitir-lhes levar mil libras britânicas para emigrar para a Palestina. Fora assim que o judeu o expressara: «Mil libras britânicas», como se os marcos alemães fossem inomináveis.
Eichmann escreveu no relatório: «O nosso objetivo não é que o capital judeu se transfira para o Reich, mas fazer com que os judeus que não têm meios emigrem.»
Partiu o lápis, incapaz de suportar a pressão dos seus pensamentos. Tirou a navalha do bolso, pensando na madrasta, fria e austera, cuja família em Viena se casara com judeus ricos, daqueles que não estariam dispostos a ir-se embora sem as suas riquezas ilícitas.
— Eu cresci aqui, em Linz — disse a Hagen, quando o comboio chegou ao topo de uma colina e as árvores se dispersaram para deixar ver a Áustria. O frio que sentia na cara naquele momento parecia-se com o frio de correr com o seu amigo Mischa Sebba por uns bosques parecidos com aquele, o vazio era como o das suas próprias mãos quando os pais entrelaçaram os dedos com os dos irmãos mais novos enquanto atravessavam a plataforma na estação de Linz, quando a família se encontrara depois de passarem um ano separados. Então, ele tinha oito anos e dez quando a voz suave da mãe deu lugar à da madrasta, que lhes lia passagens da Bíblia no apartamento estreito do número 3 de Bischof Strasse. Há quatro anos que não ia a casa, quatro anos desde a última vez que visitara o túmulo da sua mãe.
— Passava dias inteiros a montar a cavalo por campos como este — disse a Hagen. Montara principalmente com Mischa, que o ensinara a localizar os veados, a reproduzir o som de todo o tipo de pássaros e a pôr um preservativo muito antes de Eichmann pensar que a ideia de introduzir o pénis dentro de uma rapariga poderia ser mais do que simplesmente ridículo. Ainda recordava o desprezo na voz de Mischa ao descobrir o nome do seu grupo de exploradores Wandervögel: «Grifo? É uma espécie de pássaro que se extinguiu antes de os nossos avós nascerem, um abutre que se alimentava da carne dos mortos.» Mischa estava ciumento, claro. Não podia juntar-se aos rapazes mais velhos para passar os fins de semana a fazer passeios, com o uniforme e as bandeiras, porque era judeu.
Eichmann começou a afiar a ponta do lápis.
— Sou um bom cavaleiro — comentou. — Aprendi a disparar em bosques como este com o meu melhor amigo, Friedrich von Schmidt. A mãe era condessa e o pai era um herói de guerra.
Friedrich convidara-o para se juntar à Associação de Jovens Veteranos Austro-Alemães e tinham ido juntos à sua formação paramilitar. Contudo, Mischa continuara a ser o seu melhor amigo, mesmo depois de Eichmann se juntar ao partido, no dia 1 de abril de 1932. O membro 899 895. Continuara unido a Mischa, embora cada vez discutisse mais com ele, até a Áustria fechar as Camisas Castanhas nazis e a empresa Vacuum Oil o despedir unicamente pelas suas ideias políticas. Tivera de pôr as botas e o uniforme numa mala e atravessar a fronteira da Áustria para a Alemanha, em busca da segurança de Passau.
— Não vamos financiar a Palestina com capital alemão, nem sequer capital alemão judeu.
Eichmann desviou o olhar da paisagem, devolveu a atenção