O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton

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O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton


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juntamente com Stephan e a sua tia Lisl, estava à frente do primeiro quadro da sala de exposições do Edifício de Secessão: Autorretrato de um Artista Degenerado. Inquietava-a, o quadro e o título.

      — O que te parece, Žofie-Helene? — perguntou Lisl Wirth.

      — Não sei nada sobre pintura — respondeu ela.

      — Não é preciso saber de arte para que te cause uma emoção — indicou Lisl. — Diz-me simplesmente o que vês.

      — Bom, a cara é estranha, com tantas cores, embora sejam lindas e seja como se se misturassem para parecer pele — replicou Žofie, com incerteza. — Tem o nariz grande e o queixo muito comprido, como se estivesse a pintar o seu reflexo num espelho distorcido.

      — Muitos pintores chegaram a ser quase analíticos na sua abstração — explicou Lisl. — O Picasso. O Mondrian. O Kokoschka é mais emocional, mais intuitivo.

      — Porque se descreve como degenerado?

      — É irónico, Žofe — explicou Stephan. — É assim que o Hitler chama os artistas como ele.

      Žofe, não Žofie. Gostava quando Stephan a chamava assim, como quando a irmã lhe chamava Žozo.

      Chegaram ao retrato de uma mulher cujo rosto e cujo cabelo preto formavam quase um triângulo perfeito. Os olhos da mulher eram de tamanho diferente e tinha manchas vermelhas e pretas na cara. Além disso, a posição das mãos era assustadora.

      — É bastante feia e até chega a ser bonita também — comentou Žofie.

      — É verdade — concordou Lisl.

      — Este é como o retrato que há na tua entrada, Stephan — observou Žofie-Helene. — A mulher com as faces arranhadas.

      — Sim, esse também é um Kokoschka — confirmou Lisl.

      — Mas esse é um retrato seu — disse Žofie-Helene. — E é mais bonito.

      Lisl deixou escapar uma gargalhada calorosa e amável e pôs-lhe uma mão no ombro. Às vezes, o pai também costumava pôr-lhe a mão no ombro. Žofie ficou ali, desejando que aquela carícia durasse para sempre, desejando ter um retrato do pai pintado por esse tal Oskar Kokoschka. Tinha fotografias, mas as fotografias pareciam menos verdadeiras do que aqueles quadros, apesar de serem mais reais.

      PÉS DESCALÇOS NA NEVE

      Truus e Klara van Lange estavam sentadas à frente de uma secretária cheia de coisas no escritório do senhor Tenkink em Haia, onde também estava o senhor Van Vliet, do Ministério da Justiça. Tenkink tinha na mesa uma autorização para permitir que as crianças do bosque dos Weber ficassem na Holanda; uma autorização que a própria Truus redigira e que só precisava da assinatura do senhor Tenkink. Descobrira que quantas mais facilidades desse a alguém para aceitar alguma coisa, mais provável era que aceitasse.

      — Crianças judias? — estava a dizer Tenkink.

      — Temos casas onde podemos alojá-las — declarou Truus, ignorando o olhar de Klara van Lange. Klara valorizava muito mais do que ela a verdade absoluta, mas era muito jovem e não estava casada há muito tempo.

      — É uma situação difícil, entendo, senhora Wijsmuller — disse Tenkink. — Mas metade dos holandeses simpatiza com os nazis agora e o resto não quer transformar-se num esgoto de judeus.

      — O governo quer acalmar o Hitler… — interveio o senhor Van Vliet.

      — Sim — interrompeu Tenkink —, e roubar as crianças de um país não é próprio de um bom vizinho.

      Truus tocou no ombro de Van Vliet. Tenkink era um homem que respondia melhor às mulheres. Havia muitos homens assim, até os bons. Então, desejou ter trazido as crianças consigo. Era muito mais difícil ignorar uns cabelos frisados e uns olhos esperançados do que ignorar a ideia de uma criança ou de onze. Contudo, parecia-lhe cruel tirar aquelas pobres crianças da cama e pô-las num comboio desde Amesterdão até Haia só para as mostrar a um homem que deveria ser capaz de tomar a decisão correta e que sempre se deixara persuadir para isso.

      — A rainha Wilhelmina entende o problema dos alemães que desejam livrar-se da fúria do Hitler — disse Truus a Tenkink.

      — Até a família real… — respondeu ele. — Deve entender a magnitude do problema judeu. Se o Hitler cumprir a ameaça de anexar a Áustria…

      — O chanceler Schuschnigg tem os líderes nazis austríacos atrás das grades, senhor Tenkink — recordou-lhe Truus —, e não há cidade no mundo que dependa mais dos judeus do que Viena. Quase todos os seus médicos, advogados e banqueiros e metade dos seus jornalistas são judeus de nascimento, se não praticantes. Imagina mesmo que um golpe contra o dinheiro e a imprensa austríacos poderia ter sucesso?

      — Senhora Wijsmuller, não estou a dizer que não — redarguiu Tenkink —, só sugiro que seria mais fácil se as crianças fossem cristãs.

      — Tenho a certeza de que a senhora Wijsmuller o terá em conta da próxima vez que tirar as crianças de um país que já fez os seus pais desaparecer — comentou Klara.

      Truus conteve um sorriso e pegou numa fotografia emoldurada que havia entre os montes de papéis da secretária do senhor Tenkink: Nela, via-se um jovem Tenkink com a esposa, dois filhos e um bebé bochechudo. O descaramento de Klara era parte da razão por que Truus lhe pedira para a acompanhar naquela visita.

      — Que família tão encantadora, senhor Tenkink — comentou Truus.

      Recostou-se na cadeira, tentando não mostrar as suas cartas, e permitiu que o senhor Tenkink elaborasse um monólogo de orgulho paterno que, ao fim e ao cabo, ela própria encorajara. A paciência era uma das suas virtudes.

      Devolveu a fotografia a Tenkink, que sorriu com carinho.

      — Uma das crianças alemãs é um bebé, ainda mais pequeno do que a sua filha nessa fotografia, senhor Tenkink — disse Truus, usando o termo «alemãs» e não «judias», afastando o foco dessa característica que era a que mais preocupava Tenkink, antes de ir direta à questão enquanto ele ainda segurava a fotografia dos filhos. — Tenho a certeza de que até o mais frio dos corações poderá ter piedade de um bebé.

      Tenkink olhou para a autorização que estava na secretária e, depois, olhou para Truus.

      — Menino ou menina?

      — O que prefere, senhor Tenkink? Não há maneira de o saber com os bebés quando estão bem agasalhados para que a imprensa os admire.

      Tenkink, abanando a cabeça, assinou a autorização e disse:

      — Senhora Wijsmuller, quando os nazis invadirem a Holanda, espero que ponha a mão no fogo por mim. Parece que consegue convencer qualquer pessoa do que quiser.

      — Deus não o queira — disse Truus. — Mas, nesse caso, sem dúvida, Ele porá a mão no fogo por si, senhor Tenkink. Obrigada. Há muitas crianças que precisam da nossa ajuda.

      — Bom — começou a dizer o senhor Tenkink —, se não desejar mais nada…

      — Entendo que é impossível — interrompeu Truus —, mas ouvi dizer que, em Hamburgo, um grupo das SS tirou trinta órfãos da cama e deixou-os na rua de pijama.

      — Senhora Wijsmuller…

      — Trinta crianças de pijama, com os pés descalços, na neve, enquanto as SS pegavam fogo ao seu orfanato.

      — O que aconteceu ao «apenas onze»? — perguntou Tenkink, com um suspiro. Olhou para a fotografia da família e acrescentou: — E suponho que essas trinta também sejam judias. Tenciona salvar todos os judeus do Reich?

      — Alojam-se na Alemanha em casa de cidadãos não judeus — explicou Truus. — Não é necessário dizer-lhe o que os nazis fazem aos cristãos que desafiam


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