Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo


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sei, coitada!

      Paulo pôs-se de pé.

      — Então estamos ajustados? Vais trabalhar?

      — Hoje mesmo, já não cuido de outra coisa. Vá vosmecê tocando de cima qu'eu espero cá embaixo.

      — Achas que devo voltar à polícia?

      — Acho. Vosmecê não conhece algum delegado?

      — Não.

      — Mas isso é fácil. Vosmecê arranja um cartão lá no jornal e vai mesmo ao chefe. E deixe correr o barco. - Ritinha, já íntima, entrou com a garrafa e dois cálices. Mamede, porém, foi logo dizendo: Nhozinho não bebe, - e serviu-se, pigarreando grosso, com o cálice entre os dedos. Virou de um trago, caramunhando, olhos semicerrados.

      — Então até logo, Mamede. Ainda vou dar uns passos por aí.

      O mulato deu um safanão às calças:

      — Pois é: vosmecê faz por seu lado qu'eu vou mexendo cá no meu mundo. E vou trabalhar com gente direita - pode ficar certo de que se eu farejar o rasto, trago o mano nos grampos. Vá descansado.

      E estendeu a mão ao estudante. Ritinha, sempre lânguida, encostada à cômoda, olhava-o com os seus grandes olhos negros, aveludados que, por vezes, pareciam adormecer à sombra dos longos cílios. Paulo adiantou-se para falar-lhe com reserva e ela, como a custo, levantou o braço e entregou-lhe a mão, passivamente, num abandono. Tomou o chapéu e, já no quintalejo, sob a folhagem lustrosa, disse:

      — Então até logo, Mamede; e trabalha.

      — Não precisa pedir, nhozinho: eu entro nisso com o coração. - Paulo, porém, atraía-o e, quando o viu fora, longe das vistas de Ritinha, entre os velhos caixotes de plantas, perguntou-lhe em segredo: Estás armado? - O mulato recuou, como ofendido; o estudante, porém, já com a mão no bolso, continuou: Sem cerimônia, meu velho; entre nós deve haver franqueza. Eu posso passar algum.

      — Que é isso, nhozinho! Então eu vou receber dinheiro de vosmecê?! Isso não! não senhor!

      — Tu precisas, Mamede.

      — Ora quê! Dinheiro arranja-se.

      — Qual arranja-se, - insistiu o rapaz, tirando do bolso algumas notas amarfanhadas.

      O mulato sorria, meio vexado; e a voz fresca de Ritinha recomeçou languidamente a modinha sertaneja. O estudante dobrou uma nota e meteu-a, à força, na mão calosa do mulato, que recuava, sorrindo.

      — Que é isso nhozinho! Tenha paciência, isso não.

      — Ora... - Afastou-se e, voltando-se da cancela, recomendou: E trabalha! Vamos ver se conseguimos descobrir o miserável.

      — Não há dúvida. Eu saio já; é só o tempo de botar alguma coisa na boca.

      Paulo acenou um adeus, e o mulato, agarrado à cerca, sorrindo, inclinou-se, recomendando:

      — Lembranças, nhozinho.

      V

      Descendo, sempre alvejado pelos olhares curiosos da gente da estalagem, o estudante sentia-se vexado. Dir-se-ia que aquele povo simples, olhando-o e cochichando, comentava, como se o conhecesse, o segredo que ali o levara. Precipitou os passos e, achando-se na rua, atirou-se a um bonde que passava sem saber ao certo o rumo que devia seguir.

      Sentou-se, muito encolhido, e logo o tipo sensual de Ritinha surgia-lhe como uma visão. Onde a teria o Mamede encontrado, tão nova, tão linda, bem diferente da Libânia, sua antiga companheira, uma bexigosa relaxada, que andava em mangas de camisa, tresandando a sarro, cuspilhando nojosamente, sempre em rusgas com a vizinhança da casa da Rua do Conde? Invejou o mulato. Devia ser delicioso viver com uma rapariguinha como aquela, vê-la, senti-la sempre, dobrando-a a um ligeiro aceno, sujeitando-a com um ardente olhar, como uma humilde, submissa escrava do amor.

      Tão distraído estava com os pensamentos lúbricos que não deu pelo condutor - foi necessário que ele lhe tocasse o braço; voltou-se e, precipitadamente, desculpando-se, meteu a mão no bolso e pagou.

      Depois de uma curta parada, de muda, diante da estação, o bonde seguiu rápido, ladeira abaixo, aos trancos.

      Quando avistou os Arcos o estudante perguntou a si mesmo: "Mas para onde vou eu?" Não sabia, deixava-se levar ao acaso, sem indagar. Talvez encontrasse Violante.

      No Largo da Lapa esteve para descer vendo uma fila de bondes engatados que seguiam para Botafogo. Sim, naquele bairro é que ela devia estar, num chalezinho risonho, entre flores. Àquela hora dormia ainda, decerto, sobre as sedas macias do leito infame com a cabeça no braço do amante, nua e fatigada. E, lá em casa, consumida de angústia, a pobre velha andava pelos cantos, como uma trapeira, reunindo as lembranças: aqui um veludo que apertara as tranças da ingrata, um livro desmantelado, um lenço, um cromo, coisas que falavam dela, que conservavam a impressão dos seus dedos ou o aroma da sua carne. Pobre velha!

      E foi com os olhos aguados que ele viu o Passeio, as grandes árvores, os tabuleiros verdes e aquela gente que ia para ali respirar a brisa saturada do aroma da folhagem ou a que vinha do mar, cheirando a salsugem.

      Às janelas das casas, criadas batiam tapetes, levantando uma densa poeira. Das portas dalguns prédios corriam lençóis d'água negra para a calçada. Carros rodavam, tirados por trotadores de raça, cruzando-se com os apressados tílburis; passavam carroças, rangendo pesadamente e uma diligência, velha e imunda, desconjuntada, subia lenta, com oscilações, puxada por dois muares, atarracada de legumes que tufavam em grandes cestos, feixes de canas, jacás de galinhas, caixotes e, por entre a carga, agarrados aos balaustres, ou sentados em sacas, homens descalços, em mangas de camisa, oscilando com os solavancos da traquitana, que ameaçava desmanchar-se na primeira cova em que entrasse as suas rodas; mas lá ia, e as chicotadas sucediam-se no lombo dos animais que arrancavam com esforço.

      Quando o bonde chegou à praia de Santa Luzia, Paulo comoveu-se vendo as árvores, que fazem uma cerrada abóbada, coando a luz pelas abertas da folhagem, ao longo da rua, larga e direita, que enfrenta com a Misericórdia.

      No terreno que desce para a praia redes secavam, estendidas em espeques; barcos, pintados de fresco, reluziam, emborcados; uma carena apodrecia ao sol, como um esqueleto monstruoso. Pescadores teciam malhas, outros remendavam velas que o forte vento do largo estraçalhara. E a vaga rumorejava, refervia na praia por entre as pedras aveludadas de sargaço.

      Longe estacionavam os navios. Um rebocador cortava as águas lisas, levantando a mareta na qual jogavam as pirogas esguias dos pescadores praieiros. Roupas grossas secavam em cordas, panejando com o vento da barra. Gaivotas voavam ou, pousadas n'água, apareciam e desapareciam, com a arfadura do mar.

      Voltando-se, porém, deu com o frontão da Misericórdia - a escadada, a grande porta, larga e alta, que levava à sala do banco. Havia gente, enfermos pobres que iam à consulta, outros à espera de remédios. Alguns, sentados nos degraus da escada, abatidos, melancólicos, a cabeça entre os joelhos, pareciam cochilar; mulheres com crianças ao colo, velhos subindo tremulamente os degraus e uma negra que descia, de cabeça alta, olhos escuros, tateando cautelosamente, às cegas. Um tílburi estacionava embaixo.

      Paulo respirou angustiado. Era dali que ele devia sair para a vida, depois de praticar à beira dos leitos de sofrimento, esvurmando pústulas, talhando carnes, recebendo nas mãos a vasa imunda das podridões humanas, acudindo à agonia de um, ao estertor de outro, subjugando um delirante, animando um tímido, levando o cordial a um abatido, com o termômetro de axila em axila, a tomar a temperatura de corpos queimados pela febre, túmidos de inchaços ou descarnados pela tuberculose.

      Era aquela estrumeira humana que fazia vicejar a flor sempre bela da ciência; era aquela infecção que preparava a saúde. Aqueles corpos eram como compêndios nos quais, logo que esmoreciam, mestres e alunos, abrindo-os a golpes, estudavam na morte os segredos da vida misteriosa. Dali devia ele levar o diploma desejado. Era daquela imensa alcaçova, espécie de presídio da Morte, que ele devia tirar o pão, o agasalho, o conforto,


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