Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo


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deu volta para o Largo do Moura.

      Um brado chamou-lhe a atenção: partira de um beco, em cujo fundo, entaipado por uma muralha, abria-se o largo portão do Arsenal de Guerra. A esquerda, ficava o velho quartel, com o muro baixo, apuado de baionetas simbólicas, entre as quais, de espaço a espaço, desta cavam-se pequenos canhões e, em frente, todo de branco mármore, avultava o sacelo fúnebre do Necrotério.

      Os passageiros descobriram-se respeitosamente. Uma velha mulher, baixando a cabeça, fez o sinal-da-cruz; ele lançou os olhos à capelinha e viu um cadáver ocupando uma das primeiras mesas.

      Por uma rápida associação de idéias lembrou-se da Roda e já o bonde ia longe, através do largo, por onde andavam lavadeiras, quando ele se voltou para lançar um derradeiro olhar à capelinha.

      A Roda... e foi pensando nos dois abrigos que se ligam pela mesma misericórdia - um recolhendo os inocentes anônimos, repulsas da miséria e do crime, outro dando guarida aos mortos desprezados ou desconhecidos. São como duas conchas de uma balança - em uma a creche, em outra o esquife - e a mesma Senhora da Piedade, que velava à cabeceira dos que não haviam contemplado a luz da última hora, que haviam expirado em devesas escuras, vasquejando prostrados pelo homicida ou no fundo das águas, presidia o dormitório dos desamparados, acalentando os pequenitos, cujos vagidos não acham o carinho do colo e dos lábios maternais.

      Tão preocupado seguia que só levantou os olhos na Praça 15 de Novembro, diante da estátua de Osório que, em atitude enérgica, contendo o ginete, parece esperar os esquadrões gaúchos para arremeter com a fúria que o tornou lendário.

      Em várias igrejas os sinos tintinabulavam e um carrilhão ressoava uma ária profana como se os próprios templos, esquecidos do misticismo, despegados do mistério, viessem, com desplante, confabular na orgia humana, repetindo, com as vozes dos seus campanários, os estribilhos devassos.

      Desceu diante do Carceller e esteve um momento irresoluto, a olhar os que passavam - uns de volta do mercado, com as compras, outros a caminho das igrejas em formigar rumoroso.

      Para onde iria? Pôs-se a olhar as casas, os bondes que chegavam, os vendedores de frutas que arranjavam as suas cestas. De repente sentiu-se agarrado - voltou-se. Era o Bruno.

      — Que é isto?! - O "decadente" estava amarfanhado, d'olhos vermelhos e esmorecidos; um hálito quente, nidoroso, saía-lhe da boca seca. O colarinho estava todo esmagado, em gelhas, a gravata espocava. - Ah! meu amigo, que noite! Vamos tomar alguma coisa. - E, passando-lhe um braço pelas costas, lá o foi levando para o botequim. Sentou-se, tirou o chapéu. Estava com os cabelos empastados como se houvesse saído dum banho. - Dois cognacs! - pediu e, inclinando-se, com os cotovelos na mesa, exclamou de novo: Que noite, Paulo!

      — Mas donde vem você?

      — Imagina! Ontem, depois que saí da revisão, bati para os Fenianos, com o Brites.

      — Com o Brites?

      — Então? Ah! pensas que o Brites é sempre aquele mazorro que prega a moral de Corate? Fora da filosofia é um pândego de marca. Fizemos o diabo! Não imaginas. Encontrei lá uma rapariga, a Lívia, conheces? uma morena, que tem um sinal no canto da boca... Ora! Uma que esteve com o Bastos!...

      — Não conheço.

      — Ora, não conheces!...

      — Palavra!

      — Conheces! - afirmou o Bruno nervoso e, depois de haver virado o cognac, continuou: Dancei com ela e... coisas... tu sabes. - E. com os olhos lampejantes: quase viro aquilo tudo! Se não fosse o Brites... não sei. Tu sabes, eu não sou mole e com alguma coisa na cabeça não vejo nada diante de mim. Pois um sujeito, um tipo, porque me viu com a Lívia, e entendeu que me devia tomar à sua conta. Eu... ahn!

      — Brigaste?

      — Não, não briguei porque, tu sabes, aparecem sempre pacificadores, os tais da ordem. Mas que mulher, Paulo! Venho de lá agora. Não imaginas!

      — E para onde vais?

      — Vou descansar um bocado. Hoje tenho folga. E tu?

      — Estou de serviço.

      — Pois é verdade... - O Bruno, porém, lançou um olhar inteligente ao amigo e, com malícia, sorrindo: Tu também, aqui entre nós, não passaste a noite em oratório... Estás com uma cara!...

      Paulo estremeceu e mirou-se ao espelho achando-se pálido, desfigurado.

      — Não, passei a noite em casa.

      — De quem?

      — Na minha.

      — Pois sim. Todos vocês são uns santos, eu é que sou o debochado, porque conto o que faço. Eu devia fazer como vocês - não há como a hipocrisia. O Brites também é um homem sério, filósofo, abstinente... Vai vê-lo nos Fenianos.

      — Mas tu nunca me viste em bailes.

      — Mas há outras coisas e... piores. Enfim, isso não é da minha conta. E vou-me embora que estou morto. Imagina, depois daquele trabalho estúpido que tivemos ontem, um deboche até às seis... Ainda não preguei olho: também caio agora na cama e vou até às quatro. Adeus.

      Chamou o caixeiro, pagou e saíram. Justamente havia um bonde de Riachuelo. O Bruno despediu-se e precipitou-se esbaforido.

      De novo só, recaindo na preocupação, Paulo resolveu chegar à polícia para saber alguma coisa: talvez já estivessem na pista do raptor. Teve uma repentina decisão, partindo imediatamente para a Rua do Ouvidor. A esquina, porém, deteve-se indeciso:

      "Não, não podiam ter ainda encontrado o homem. Certamente a diligencia começara de manhã e não era assim tão fácil descobrir um criminoso que, sem dúvida, procurara, com tempo, refúgio seguro para gozar as primícias de um corpo jovem e formoso. Iria à noite saber. Conversaria com o delegado ou com o próprio chefe." Demais, sentia-se fatigado como se, só então, lhe pesasse o cansaço da grande agitação da véspera: as pernas vergavam-se-lhe, ardiam-lhe os pés e um suor viscoso untava-lhe todo o corpo; tinha uma sensação de febre, pulso agitado, boca ressecada e saburrosa. Saía um bonde da Rua da América, tomou-o.

      Até a casa foi numa inércia mole, como adormecido, sem sentir a viagem, pensando vagamente em coisas diversas: ora nos próximos exames, ora na mãe, na irmã ou em Idalina, uma loura a quem fazia versos e que o esperava à janela, com flores e bilhetinhos, tresandando a essências reles. Outra como Violante...

      Repentinamente, porém, numa mutação introspectiva, viu o Bruno e o Brites, afogueados, girando como dois convulsionários, agarrados a mulheres. Teve uma súbita irritação, uma revolta surda contra a imaginação desvairada - queria apenas cuidar da irmã e o seu espírito cambiava em ziguezagues, avançando, retrocedendo, ora em sonhos, ora em recordações. Mas já o bonde ia perto da casa. Estavam vizinhos à janela e ele descobriu Felícia conversando com uma mulher gorda que comprava a um quitandeiro. O sangue ferveu-lhe no coração e seus olhos cravaram-se, com furor, na velha negra.

      Já no estribo, sem corresponder aos cumprimentos dos vizinhos, fitava-a duramente. Quando ela o viu saltar, despediu-se da mulher, à pressa. Ele amiudou os passos para alcançá-la e, à porta, enquanto ela metia a mão pelo postigo para dar volta à taramela, interpelou-a em voz surda e colérica:

      — Já foste bater língua pela vizinhança, Felícia!...

      — Eu?! Eu não, nhozinho. Minha boca não se abriu pra falar em Nhá Violante. Eu estava falando dumas costuras.

      Entraram e Paulo irrompeu explodindo:

      — Pois eu não quero conversas com vizinhos. Não tenho nada com essa corja.

      A negra foi-se resmungando e Dona Júlia, que ouvira a voz do filho, apareceu arrastando os passos, ansiosa e abatida como se saísse de longa enfermidade; e perguntou:

      — Então, Paulo?

      — Falei ao Mamede.

      — E a polícia?


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