Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo


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em nome da moral ofendida, para a lei que ressalva a honra e obriga os devassos a repararem as faltas.

      Revoltou-se: "Vão ver que o miserável conhece o canalha... Talvez até o proteja... Súcia! É assim mesmo." E, no seu ódio, desejava que o escândalo houvesse irrompido, alastrando o noticiário com pormenores sitis, informes íntimos: o retrato de Violante, o de Dona Júlia, o dele e elogios, muito literários, à honestidade da família exemplar, referências ao pai, um herói da Pátria e a narração da sua trabalhosa e angustiada noite, por chuva e vento, à procura da seduzida.

      "Qual! tivesse eu fortuna... E assim mesmo."

      Por fim, nervoso, fincando a bengala no soalho, voltou-se e foi examinar a cozinha. Achou-a limpa, com um fogão novo, pia forrada de zinco, e prateleiras.

      "Ora! que se arranje. Eu é que não hei de estar a amofinar-me por causa dela. Não faltava mais nada..." E sentiu-se aliviado com o silêncio dos jornais. "Talvez que o delegado houvesse ocultado a notícia por delicadeza, em atenção a ser ele da imprensa... Caminhou para a sala, Vagaroso, pensativo, passando a mão pelas paredes. Esteve um momento indeciso, batendo de leve com a ponta do pé, a pensar na mudança. Súbito, com egoísmo, exclamou: "Melhor! viveremos mais tranqüilos."

      Saiu, fechou a porta e ia bater à casa da vizinha, quando viu vir um comboio de bondes. Sentiu inexplicável vexame achando-se ali sozinho, diante daquela multidão que descia, e para que os passageiros não o vissem de face, deu as costas à rua e ficou-se a contemplar a casa, a olhar os escritos até que os bondes passaram.

      Bateu à porta da vizinha e a loura, reaparecendo, disse-lhe, numa aravia guaiada - "que a casa estivera alugada por cem mil-réis, mas a senhoria, por causa das obras que fizera, pedia então cento e vinte". Agradeceu as informações e seguiu.

      Numa casa da esquina, com o cavalete junto à janela, um homem desenhava o retrato de uma criança, e Paulo, devassando, de relance, o interior, viu, pelas paredes, esboços a crayon, pequenas telas de gênero e uma paisagem.

      A senhoria morava na Rua do Lavradio. Caminhou com pressa, receoso de que alguém o precedesse e, como o seu alfaiate prestava-se e dar-lhe a fiança, tratou a casa e, tornando à Rua Senador Pompeu, já levava no bolso o recibo das andorinhas que, no dia seguinte, de manhã, deviam fazer a mudança.

      Foi com apreensiva tristeza que Dona Júlia ouviu a descrição minuciosa da nova residência, no cais da Glória, tão longe! Ela, que tanto insistira pela mudança, sentia-se, então, agarrada à casa. Parecia-lhe que se a deixasse nunca mais tornaria a ver a filha e, não sem timidez, contando com a revolta do filho, perguntou:

      — E se Violante voltar... Como há de ser?

      Paulo encarou-a mudo, brincando com as chaves e, como se não houvesse entendido a pergunta, repetiu em tom irônico:

      — Se Violante voltar...

      — Sim, confirmou a velha.

      Houve um silêncio. Paulo por fim, encolhendo os ombros, esticando o beiço, sorriu desdenhoso:

      — Mamãe ainda espera que Violante volte...

      — Como não, meu filho? Onde há de ela ficar?

      — Ora, mamãe. Cravando, então, os olhos na velha, disse resolutamente: Quem tem boca vai a Roma. Não saísse. Nós é que não podemos ficar aqui perseguidos pela crítica implacável dessa vizinhança bisbilhoteira até que a senhora Dona Violante se lembre de voltar.

      Dona Júlia sussurrou:

      — Eu tenho medo que ela chegue e encontre a casa fechada. É uma criança, não conhece a cidade. Que será dela então? Tu não pensas nisso?

      — Eu penso, mas é em sair daqui quanto antes. Violante só voltará para casa, se voltar, trazida pela polícia ou pelo Mamede. Sozinha?! Vá esperando!

      — Tu não queres que eu diga aos vizinhos...

      — A senhora está louca? Para quê? Para rirem de nós?

      — Então não sei como há de ser.

      Calaram-se recolhidos em pensamentos opostos: Dona Júlia a imaginar a volta da filha: ela ali, à porta da casa fechada, a olhar o escrito, chorando, sem saber o destino dos seus; ele a fazer planos de vida calma naquela casa tranqüila.

      Bateram, voltaram-se ambos e Dona Júlia chamou Felícia para ver quem era. A negra tornou em pontas de pés, cochichando: "É seu Fábio." Os dois levantaram-se à pressa caminhando para a sala, porque a negra espiara apenas, timidamente, pelas frestas da persiana, deixando o homem na rua, ao sol, com receio de que o estudante se revoltasse contra ela. Dona Júlia abriu a porta e um homenzarrão entrou limpando o suor que lhe escorria do rosto abrasado.

      Alto e robusto, espadaúdo, com uma densa barba grisalha que lhe dava à fisionomia o ar expressivo de energia e doçura com que a Arte nos representa os patriarcas bíblicos, tinha, em contraste com o todo másculo, uma voz inesperadamente branda que surpreendia, saindo daquele peito forte, através da espessidão das barbas veneráveis. Logo que entrou, com o chapéu ainda à cabeça, um largo chapéu d'abas moles, o guarda-chuva debaixo do braço, estendeu as mãos ambas a Dona Júlia e a Paulo e, de olhos nela, perguntou, depois dum aceno da cabeça, franzindo a fronte: "Então que foi isso?" Dona Júlia, desabando os braços, encolhendo os ombros, baixou a cabeça e o velho, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se declarando - "que só naquela manhã recebera a carta que ela lhe escrevera". E perguntou: "Mas quando foi?"

      — No sábado, à noite, compadre.

      O velho meneou com a cabeça; e, voltando-se para o estudante, indagou:

      — Já foste à polícia?

      — Na mesma noite.

      — Então?

      — Ora! o senhor bem sabe como aquilo é. Prometeram fazer tudo e ficou nisso...

      — E não voltaste?

      — Para quê?

      — Como para quê? Que diabo, rapaz! Hás de ser sempre o mesmo descansado? Então é assim? A gente move-se, homem de Deus; e, se tu és o primeiro a mostrar indiferença pela causa, como queres que os estranhos se interessem por ela?

      Dona Júlia, sentindo-se protegida, ousou falar.

      — Eu disse isto mesmo, compadre.

      — Aí vem a senhora... Eu fiz tudo: fui à polícia na mesma noite, com uma tempestade medonha, dei todas as informações ao delegado, não tenho culpa de que as nossas autoridades sejam relaxadas. Em Londres o homem já estaria preso.

      — Qual Londres! - bramiu o velho, atirando os braços.

      — Hei de ficar plantado na polícia dia e noite? Isto não! Estou com os exames à porta e não quero fazer figura de idiota.

      — Filho, eu bem te conheço, - tornou o velho com calma; - deixa-te de histórias. Vens agora com exames, porque não tem convém andar por aí uns dias trabalhando. - Cruzou os braços: Mas então, queres tua irmã perdida? Não te vexas? Não tens pena de tua mãe? Eu sei: és um excelente rapaz enquanto não te incomodam. Meu amigo, quem quer vai. E por essas e outras que há por aí tanta miséria. A polícia auxilia, mas é preciso que a gente não a deixe, mesmo porque ela tem mais em que cuidar. Por que não dás um pulo até lá? Vai saber, anda. - Paulo fez um gesto de enfado e o velho insistiu: Tem paciência, é tua irmã, é teu sangue. E a vergonha não ficará só com ela. És o homem da casa. Vai, anda! não percas tempo. E agarra-te com o chefe, com os delegados.

      — Pois sim: há de ser a mesma coisa: que vai mandar ver...

      — Não há tal: os delegados atendem, estão lá para isso. Estás fatigado, compreendo, mas tem paciência. Dá um pulo à polícia, vê se podes falar ao chefe, conta-lhe tudo e estou certo de que ele não se há de limitar a dizer - que vai mandar ver. Deixa-te de histórias, eu também já andei por lá, sei como aquilo é. Move-te, move-te.

      —


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