Ndura. Filho Da Selva. Javier Salazar Calle

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Ndura. Filho Da Selva - Javier Salazar Calle


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para disfarçá-lo melhor. De que me adianta poder conseguir comida se não posso comê-la? Correr o risco de que uma serpente me morda e me mate, para que? Além disso, havia o problema da água. Tinha que encontrar algo porque não desejava ter uma sede terrível e só me sobravam dois refrescos. Deixei-me cair no chão, suando copiosamente pelo esforço realizado de capturar a serpente. Derrotado, bebi um dos refrescos e joguei a lata fora. Que me descubram, afinal de contas é melhor morrer crivado de balas do que de fome, demora menos. Ademais, havia espalhado tripas de serpente em um círculo de dois metros ao meu redor. Adeus triunfador, adeus sobrevivente nato, olá fracassado que ia morrer em um jardim selvagem. Era o que merecia, então não podia me queixar. Havia matado os meus dois melhores amigos. De todo modo, sabia que havia visto algo na televisão sobre a água na selva, me lembrava que diziam que era fácil conseguir em um lugar, de uma forma correta, mas não me lembrava onde.

      Durante um tempo, que não calculei, fiquei ali, sentado no chão, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada, com a mente em branco, me deixando levar. Resignação, conformismo, abandono, renúncia à vida. O acidente aéreo com a morte de Alex, ver como metralharam Juan, a euforia da serpente e a decepção posterior, o cansaço, o sonho… coisas demais em praticamente vinte e quatro horas, emoções demasiado intensas. Por que Juan teve que ser tão estúpido e sair correndo daquele jeito? Por que me havia deixado sozinho? Pelo menos se estivéssemos os dois tudo seria diferente; mas não, tive que tentar fugir desse modo tão… tão… Queria voltar para casa, fechar os olhos e que ao abri-los novamente estivesse em minha cama e tudo tivesse sido um pesadelo muito realista, um sonho ruim como qualquer outro, uma anedota para contar quando estivesse à tarde com a namorada e os amigos. Comecei a chorar, mas quase não caíam lágrimas de meus olhos.

      Perdido, desanimado, desiludido e quase desmaiando de cansaço e sono. Não sabia o que fazer. Por fim, por puro automatismo, enterrei a lata que havia jogado no chão e me levantei para seguir andando, ainda que agora a um ritmo muito mais tranquilo, deixando-me levar, quase arrastando os pés. Fui andando e parando intermitentemente até que dessem oito horas da tarde. As paradas eram cada vez de maior duração, os momentos de andar cada vez mais curtos. Fazia de cajado a vara que havia usado contra a serpente, assim descarregava a pressão do joelho lesionado, ainda que nesses momentos já nem sentia as pernas. Andar por andar, sem tentar sequer fixar bem o meu rumo, no fim das contas, não sabia com certeza como fazer e quase podia dizer que não me fazia diferença. Por que tive que convencê-los a vir aqui, por quê? Nunca escutava ninguém, sempre tendo que prevalecer minha vontade. Veja para onde me trouxe minha vontade de controlar tudo, de mandar em tudo. Juan, idiota, por que saiu correndo dessa maneira, se suicidando? Isso era culpa sua, eu não tinha nada a ver com isso. Culpa sua. Sua.

      Quando não consegui mais, comi uma das caixas de marmelo inteira e bebi a lata que sobrou, escondendo todos os restos, inclusive uma das duas mantas que estavam comigo. Para que queria duas? quanto menos peso carregar, melhor. Ademais, me davam muito calor e quando carregava a mochila tinha a impressão de que estavam assando minhas costas, levando a camiseta permanentemente grudada ao corpo pelo suor, o que produzia uma sensação incômoda. Também havia começado a ter uma sensação constante de enjoo, possivelmente porque estava desidratado. Não me estranhava, os refrescos matavam a sede no momento mas não ofereciam muita hidratação. O efeito ioiô, como chamava um colega do colégio, dizia ele, por causa do açúcar.

      Como estava anoitecendo e não tinha vontade de voltar a dormir tão incomodamente em uma árvore, busquei um lugar um pouco resguardado, com a terra seca, fabriquei um magro colchão de folhas e galhos verdes, me aconcheguei coberto com a pequena manta como pude e com a mochila como travesseiro e dormi. Havia passado meu primeiro dia inteiro na selva e já estava mais do que farto, rendido e com vontade de que isso terminasse de qualquer maneira.

      DIA 3

      

      Algo estava me atacando, sentia como me picava por todo o corpo. Levantei-me de um salto, totalmente desperto de modo súbito e gritando. Olhei para minhas mãos e estavam cobertas de formigas avermelhadas com a cabeça muito grande, meu corpo estava completamente coberto delas. Picavam-me por todos os lados. Tirei a roupa, quase arrancando-a, comecei a esfregar o corpo com as mãos, a saltar, a me agitar e retorcer como o rabo de um lagarto, dando gritos e gemendo de dor. Algumas entravam pela minha boca, me obrigando a cuspir de vez em quando, e outras pelo nariz, nas orelhas, por toda parte. Era como se um enxame inteiro de abelhas houvesse decidido me atacar ao mesmo tempo. Pouco a pouco consegui me desvencilhar das formigas, mas demorei uns dez minutos até que notei que nenhuma mais corria impunemente pelo meu corpo. Por onde havia estado deitado, passava uma coluna interminável de formigas9. Tinha o corpo vermelho dos golpes que me havia aplicado para arrancar as formigas e cheio de pontos ainda mais vermelhos que as picadas recebidas por esses malditos insetos. Tudo me ardia, e tanto, que não sabia por onde começar a me coçar. Ainda que não houvesse nenhuma sobre mim, de vez em quando me dava a impressão de notar como se algo se mexesse por algum lado e voltava a me agitar convulsivamente.

      Quando dominei um pouco minha frustração, peguei a mochila e sacudi também todas as formigas, e fiz o mesmo com a manta e com a roupa que havia atirado ao chão.

      Calcei apenas os tênis e o resto guardei na mochila. Agarrei umas pedras e uns ramos e os atirei com raiva sobre a organizada coluna, enquanto insultava as formigas. Durante um momento perdi o controle, a ira me invadiu. Sim, as formigas tinham culpa de tudo, tinha que acabar com as formigas, elas me haviam levado a esta estúpida situação e iriam pagar por isso. Pisei nelas mais uma vez e mais outra, frenético, como que possuído por um ardor de destruição irrefreável. Algumas subiam pelas minhas pernas picando-me novamente, mas já não sentia nada, a dor havia deixado de existir por um momento. Um solitário pensamento em minha cabeça: acabar com as formigas. Sapateava, pisoteava sobre as que estavam no solo e esmagava com fortes tapas as que tinha pelo corpo, massacrando-as contra minhas pernas, meus braços ou meu peito. Durante uns minutos essa foi a minha única guerra, meu único mundo: pisadas, golpes com a mão, gritos de fúria, de frustração contida durante tempo demais. Um Guliver furibundo destruindo o mundo de Lilipute. Assim que me afastei uns passos, desmoronei no chão e fiquei um tempo como se estivesse ausente, totalmente abandonado à minha sorte, cego ao que ocorria ao meu redor, ignorante de qualquer outra coisa que não fosse o nada, o vazio interior. Ao final, reagi. Durante a noite me havia parecido ter ouvido o murmúrio de uma corrente de água por perto, então fui procurá-la, nu, apático, tremendo, com o corpo todo ardendo, cajado na mão e mochila no ombro. Atrás de mim, uma miríade de formigas amassadas e muitas outras correndo ao redor em seu baile particular de desorganizada loucura.

      Efetivamente, meu ouvido não havia me enganado. Um rio de uns cinco metros de largura abria caminho entre a floresta diante dos meus olhos. Minha primeira intenção foi tirar os tênis e jogar-me na água, mas me lembrei de algo sobre sanguessugas e primeiro inspecionei a água da margem com cuidado, deixando que a prudência fosse mais forte que o meu desespero por um momento. Só a ideia de que alguma delas grudasse ao meu corpo me estremecia. Enganchada, chupando meu sangue. Ao tocar a água com a mão, notei que não estava fria demais para que pudesse suportar. Não me parecia ver nada, exceto uns belos e pequenos peixes coloridos, alguns mais coloridos que outros, que eram pequenos demais para alimentar e bonitos demais para matar. Tinham o corpo comprido e aplanado, a cauda dividida em três partes, sendo a central parecida com plumas de aves, os olhos proporcionalmente grandes com relação à cabeça, tinham uma coloração azul iridescente, mas quando os raios do sol refletiam em seu corpo, toda uma incrível gama desde o azul até o violeta se difundia por suas escamas10. Procurei alguma outra coisa, como piranhas, crocodilos ou algo assim e não encontrei nada. Assim, decidi me molhar e depois beber um pouco d'água.

      Entrei um pouco na água, assegurando primeiro com o cajado que o solo era firme, com os tênis calçados, porque tinha medo de que algum bicho me picasse ou que me cravasse algo nos pés. A primeira impressão me produziu um calafrio pelo contraste da temperatura da água com a do exterior, ainda que tenha me acostumado depressa. Ao meu redor voavam algumas libélulas de cores vivas, com suas formas


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<p>9</p>

Fauna: Formigas legionárias, Dorylus Spp

<p>10</p>

Fauna: Tetra do Congo, Phacogrammus interruptus