Ndura. Filho Da Selva. Javier Salazar Calle

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Ndura. Filho Da Selva - Javier Salazar Calle


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a fazer fogo por medo dos rebeldes, a menos que descobrisse como fazer fogo sem fazer fumaça. Talvez se a comesse em pedaços bem pequenos não seria tão difícil. Algo parecido com carpaccio dos restaurantes italianos.

      Olhando para o rio em busca de algum peixe com aparência comestível, notei umas plantas que cresciam na ribeira. Tinham mais de meio metro de altura, de cor verde ou avermelhada nas folhas mais novas. Estavam cobertas em seu talo por pelos eriçados. Suas folhas eram ovaladas de contorno com as bordas serrilhadas, como pequenos dentes14. O que me chamou a atenção de verdade foi o seu cheiro. Tinha um intenso aroma de menta. Pensei que talvez me pudesse ser útil e colhi um bom punhado de folhas.

      A selva não parava de me surpreender. Talvez eu realmente conseguisse sobreviver. Novamente a euforia. Nesse dia decidi seguir como na tarde anterior: paralelo ao leito do rio mas sem andar pela costa. Que me lembrasse, a República do Congo não tinha saída para o mar, de modo que o rio só desembocaria no oceano em outro país, onde não havia rebeldes e eu poderia encontrar ajuda. De todo modo, o método alternativo de me guiar pelo sol não parecia me levar a lado nenhum, já que não fazia a menor ideia de como me orientar.

      A manhã se passou tranquila. Andando e descansando; ainda que com uma sensação de cansaço permanente que fazia com que minhas pernas pesassem vinte quilos cada uma. De vez em quando tinha a sensação de estar sendo vigiado, uns olhos fixos permanentemente em minhas costas, mas por mais que olhasse nunca via ninguém, nem sequer algum rastro de vida humana. As meias surpreendentemente haviam secado. Os tênis ainda estavam úmidos, mas pelo menos já não faziam aquele ruído desagradável, ainda que tivessem infectado meus pés com algum tipo de fungo, como se houvesse estado em uma piscina pestilenta. Quando via algum pássaro ou qualquer animal ficava totalmente quieto e observava pra tentar descobrir o que comiam, mas não tive sorte, apenas os vi se moverem de um lado para outro sem aparentarem ter muita fome. Sorte deles.

      Em um dado momento algo caiu no meu nariz, passei a mão e observei, parecia água. Olhei para cima e vi como caía uma gota e outra e logo outra, até que em um dado momento as nuvens pareciam estar desabando sobre mim. O céu escureceu quase de repente. Estava chovendo, digo, caindo um dilúvio de um jeito que nunca havia visto antes. Muito longe soavam trovões e, de vez em quando, entrevia o fugaz resplendor de um relâmpago, fulgores que iluminavam ao redor como se fosse um farol. Rapidamente busquei um lugar onde pudesse me refugiar. O único que encontrei foi a possibilidade de ficar debaixo de uma árvore agachado no chão com a mochila sobre as minhas pernas. Vesti o gorro e cobri meu corpo com a manta. Logo, imitando as aves em momentos assim, me dispus a permanecer sem mover nem um dedo para me molhar o mínimo possível, deixando que a água se resvalasse sempre pelos mesmos lugares.

      Esteve chovendo sem parar durante muitas horas, tantas que me pareceram dias. Tinha fome mas não me atrevia a me mexer. A água havia encharcado completamente a manta e a camiseta, e já notava filetes caindo por algumas partes de minhas costas. Também caia pelo tronco da árvore passando em algumas partes por baixo de mim. Mais água, mais trovões, mais flashes de luz. Nessas horas em que não movi nem mesmo a cabeça, distraía-me tentando vislumbrar algum pequeno inseto no chão e, quando o encontrava, me entretinha vendo como as gotas caíam em cima dele ou como a correnteza o arrastava. Também localizei um par de minhocas fazendo uma festa, esfregando-se na lama da superfície. E seguia chovendo e trovejando, como se o Deus criador bantu, Bumba, estivesse acumulando forças e soltasse toda sua raiva em um único golpe, sobre minha cabeça, para acabar comigo. Sentia frio e comecei a tremer, os dentes se batiam até mesmo contra minha vontade, de forma incontrolável. Em algumas partes se haviam formado pequenos riachos, que corriam desviando dos obstáculos em direção desconhecida. Atrás de mim ouvia como o rio rugia com mais força do que o normal, supunha que aumentado de volume devido à chuva. A fome apertava cada vez mais meu estômago, e a chuva continuava e continuava. E mais trovões e mais faíscas elétricas produzidas pelas descargas dos combates entre as nuvens. Cada vez estava mais molhado. Isso de ficar quieto devia ter efeito com pequenos chuviscos, mas com tormentas assim somente valia ter um teto e quatro paredes, porque não creio que nem sequer um guarda-chuvas me livrasse de ficar como se tivesse acabado de nadar no rio. Agora já não tinha que me preocupar porque meus tênis estavam molhados, agora só queria saber quando o céu terminaria de se esvaziar sobre minha indefesa cabeça.

      Estava desesperado. Comecei a pensar que isto poderia durar por dias ou até semanas. Lembrei-me das monções asiáticas e de seus efeitos devastadores. Não estranhava que houvesse árvores tão altas na selva se eram regadas assim amiúde. Se isso durasse muito mais tempo ia logo parecer um aquário com macacos em lugar de peixes. Curiosamente, com a chuva, se apagaram a maioria dos sons e ruídos habituais. Devia ser que o estrondo da água caindo apagava todos os outros, cujos responsáveis haviam ido para casa se refugiar. Todos menos eu, que estava ali, no meio da tempestade do século sem mal conseguir onde me abrigar, na mais absoluta intempérie. Se continuasse descendo neste ritmo tão rápido a próxima coisa que cavaria seria minha tumba, para poder me sepultar quando morresse de esgotamento físico e mental. Do jeito que estava não me parecia uma opção tão ruim, quase um descanso desejável.

      Um raio caiu sobre uma árvore a uns dez metros à minha frente partindo-a pela metade. O estrondo que produziu me deixou sem poder ouvir durante alguns segundos. O chão tremeu, o fim do mundo se aproximava e eu estava perdido. A parte superior da árvore caiu ao chão em meio a um forte alvoroço, logo grudado ao tronco de outra árvore que se mantinha de pé e queimando na sua extremidade. Um cheiro estranho inundou tudo. De início fiquei petrificado pensando no perigo que corria estando tão próximo de outra árvore, imaginando um raio atravessando o meu corpo, fritando-me instantaneamente por dentro; mas logo me peguei observando o fogo e decidi que, já que estava completamente ensopado e não fazia diferença ficar quieto ou não, ao aproximar-me do fogo teria ao menos um pouco de calor, algo que nesse momento desejava com todas as minhas forças. Levantei-me e todas as articulações me doeram como se me cravassem uma infinidade de grandes agulhas, principalmente nos joelhos. Tive que tentar três vezes e esfregar muito as pernas até que consegui alguma mobilidade. Aproximei-me da chama apenas alguns centímetros.

      O calor do fogo me golpeou o rosto como uma onda, mas foi uma sensação agradável. Fechei os olhos e desfrutei do calor redentor, libertador, que me envolvia. Mesmo que já não servisse para nada, voltei a me cobrir com a manta. Enquanto esperava que o dilúvio terminasse buscava pequenos galhos ou gravetos próximos e os jogava ao fogo para que tivesse mais do que se alimentar, que não lhe faltasse combustível. Quando tocavam o fogo produziam crepitações e produziam um resplendor momentâneo, como lampejos, mas logo ardiam com rapidez. Aproveitei também que havia me movido para tirar outros três frutos da mochila, descascá-los e comê-los. Fiquei enjoado deles, mas não acabaram de todo com minha fome e não queria comer mais a mesma coisa. Resolvi mordiscar um galho para despistar o apetite.

      Acredito que, com quase toda certeza, essa noite teria morrido se não fosse pelo calor desse fogo oportuno.

      Adormeci várias vezes, com a cabeça caindo sobre meus joelhos, mas logo me despertava com o estrondo de um raio ou pelo grito aparentemente desesperado de uma criança. Praticamente já não sentia mais a água sobre meu corpo. Amparado pelo ardor do meu amigo vermelho e amarelo passei toda a noite, até que amanheceu e, por fim, parou de chover.

      

      

      Um sol radiante surgiu por entre as nuvens acariciando meu rosto emaciado. Olhei para o relógio, eram quase oito horas da manhã. Fiz um cálculo rápido: havia estado chovendo quase vinte horas seguidas. Bebi um bom trago e comi os dois frutos que me sobravam. Não me sentia nada bem. Sentia-me debilitado, tremendo, com as forças diminuídas, quase desfalecido. Podia ouvir como os sons habituais de piados, gritos, zumbidos e coisas assim tomavam outra vez posse da selva, desta vez acompanhados do ruído da água correndo pelo solo, caindo por entre as folhas das árvores em milhões de cascatas e, sobretudo, o incrível rugido que saía do rio atrás de mim. A umidade habitual havia aumentado muito com


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<p>14</p>

Flora: Hortelã-da-água, Mentha aquatica