Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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na sua folhagem fina; para o horizonte arredondavam-se colinas cobertas da rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silêncio; só às vezes, ao longe, num caminho, um carro chiava. E naquela serenidade da paisagem e da luz, os padres iam caminhando devagar, tropeçando um pouco, de olho aceso, estômago enfartado, chacoteando e achando a vida boa.

      O cônego Dias e o abade, de braço dado, caturravam. O Brito, ao lado de Amaro, jurava que havia de beber o sangue ao morgado da Cumeada.

      — Prudência, colega Brito, prudência, dizia Amaro chupando o cigarro.

      E o Brito, com passadas de carretão, rosnava.

      — Hei-de comer-lhe os fígados.

      O Libaninho atrás, só, cantarolava em falsete:

      — Passarinho trigueiro,

      Salta cá fora...

      Adiante de todos ia o padre Natário: levava a capa no braço, arrastando pelo chão; a batinha desabotoada por trás deixava ver o forro imundo do colete; e as suas pernas escanifradas, com as meias pretas de lã cheias de passagens, faziam bordos que o atiravam contra o silvado.

      E no entanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:

      — Eu só me contentava em agarrar num cajado e correr tudo! tudo! - e gesticulava com um gesto imenso que abrangia o mundo!

      — Tem as asas quebradas,

      Não pode agora...

      Gania atrás o Libaninho.

      Mas pararam de repente: Natário adiante gritava com voz furiosa:

      — Seu burro, você não vê? Sua besta!

      Era à volta do atalho. Tropeçara com um velho que conduzia uma ovelha; ia caindo; e ameaçava-o com o punho fechado numa raiva avinhada.

      — Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.

      — Sua besta! berrava Natário com os olhos chamejantes. Que o racho!

      O homem balbuciava, tinha tirado o chapéu; viam-se os seus cabelos brancos; parecia ser um antigo criado da lavoura envelhecido no trabalho; era talvez avô - e curvado, vermelho de vergonha, encolhia-se com as sebes para deixar passar no estreito caminho de carros os senhores padres joviais e excitados da vinhaça!

      Amaro não os quis acompanhar até à fazenda. Ao fim da aldeia, no cruzeiro, tomou pelo caminho de Sobros, voltou para Leiria.

      — Olhe que é uma légua à cidade, dizia o abade. Eu mando-lhe aparelhar a égua, colega.

      — Qual história, abade, a perninha é rija! - e, traçando alegremente a capa, partiu cantarolando o Adeus...

      Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido dum muro de quinta coberto de musgos e eriçada no alto de luzidios fundos de garrafas. Quando Amaro chegou próximo ao portão de carros, baixo e pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande vaca malhada; Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva; a vaca trotou balouçando a papeira - e Amaro ao voltar-se viu Amélia, ao portão, que saudava, dizendo toda risonha:

      — Então está-me a espantar o gado, senhor pároco?

      — É a menina! Que milagre é este?

      Ela fez-se um pouco vermelha:

      — Vim à quinta com a D. Maria da Assunção. Vim dar uma vista de olhos à fazenda.

      Ao pé de Amélia uma rapariga acamava couves numa canastra.

      — Então esta é que é a quinta da D. Maria?

      E Amaro deu um passo para dentro do portão.

      Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra doce, estendia-se até à casa que se entrevia no fundo, branquejando ao sol.

      — É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se também por aqui. Vá, Joana, avia-te!

      A rapariga pôs a canastra à cabeça, deu as boas-tardes, meteu pelo caminho de Sobros, batendo muito os quadris.

      — Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade, considerava o pároco.

      — Venha ver a nossa fazenda! disse Amélia. É uma migalhinha de terra, mais para fazer uma idéia. Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá baixo com a D. Maria, quer?

      — Valeu. Vamos lá à D. Maria, disse Amaro.

      Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de folhas secas, e, entre os troncos espaçados, moutas de hortênsias pendiam abatidas, amareladas dos chuveiros; ao fundo a casa baixa, velha, de um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes abóboras amadureciam ao sol, e no telhado, todo negro do Inverno, esvoaçavam pombos. Por trás o laranjal formava uma massa de folhagens verde- escuras; uma nora chiava monotonamente.

      Um rapazinho passou com um balde de lavagem.

      — Para onde foi a senhora, João? perguntou Amélia.

      — Foi pro olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada. O olival era longe, no fundo da quinta: havia ainda grandes lamas, não se podia ir lá sem tamancos.

      — Vai-se a gente sujar toda, disse Amélia. Deixar lá a D. Maria, hem? Vamos nós ver a quinta... Por aqui, senhor pároco...

      Estavam defronte dum velho muro onde cresciam clematites. Amélia abriu uma porta verde; e por três degraus de pedra desconjuntados desceram a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do muro cresciam rosas de todo o ano; do outro lado, por entre os pilares de pedra que sustentavam a latada e os pés torcidos das cepas, via-se, batido de luz, com tons amarelados, um grande campo de erva; os tetos baixos do curral coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e desse lado um fumozinho leve e branco perdia-se no ar muito azul.

      Amélia a cada momento parava, explicava a quinta. - Ali ia semear- se cevada; além havia de ver o cebolinho, estava muito bonito...

      — Ah! a D. Maria da Assunção traz isto muito bem tratado!

      Amaro ouvia-a falar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua voz naquele silêncio dos campos parecia-lhe mais rica, mais doce; o grande ar dava-lhe uma cor mais picante às faces; o seu olhar rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que ele entreviu, perturbou-o como um começo da sua nudez.

      Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido dum regueiro. Amélia riu muito do pároco, que tinha medo dos sapos. Ele então exagerou os seus sustos. Ó menina Amélia, haveria víboras? Ele roçava-se por ela, afastando-se das ervas altas.

      — Vê aquele valado? Pois para o lado de lá é a nossa fazenda. Entra- se pela cancela, vê? Mas veja lá se está cansado! Que o senhor parece-me que não é grande caminhador... Ai, um sapo!

      Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o ombro. Ela empurrou-o docemente, e com um riso cálido:

      — Seu medroso! seu medroso!

      Estava toda contente, toda viva. Falava na sua fazenda com uma vaidadezinha, satisfeita de entender da lavoura, de ser proprietária. - A cancela está fechada, parece - disse Amaro.

      — Está, fez ela. - Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada! Que pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes ombreiras de madeira encravadas na espessura do silvado.

      — Foi o caseiro que levou a chave!

      Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz: - Antônio! Antônio!

      Ninguém respondeu.

      — Anda lá para o fundo da quinta! disse ela. Que seca! Se o senhor pároco quisesse, aqui adiante pode-se passar. Há uma abertura no valado, chamam-lhe o salto da cabra. Pode a gente saltar para o outro lado.

      E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:

      — Quando eu era


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