Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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julgava mais inteligente por ser seu superior na hierarquia; e não perdera, desde o seminário, a sua dependência de discípulo. Depois, se quisesse arranjar uma casa e uma criada para ir viver só, necessitava o auxílio do cônego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.

      Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morrão avermelhado. Os tições da braseira, cobertos duma pulverização de cinza, revermelhavam vagamente. E o cônego, sentado numa cadeira de braços, com o capote pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, amodorrado no calor do lume, com o Breviário sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada dormitava como ele.

      Aos passos de Amaro o cônego abriu muito devagar os olhos, rosnou:

      — Ia adormecendo, hem!

      — É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?

      — Ah! é você? disse o cônego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?

      — Vim por aqui.

      — Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mão- cheia! Eu carreguei-me um bocado, disse o cônego rufando com os dedos na capa do Breviário.

      Amaro, sentado ao pé dele, remexia devagar o brasido:

      — Sabe você, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: - Aconteceu-me um caso! - Mas reteve-se, murmurou: - Estou hoje esquisito; tenho andado ultimamente fora dos eixos...

      — Você, com efeito, anda amarelo, disse o cônego, considerando-o. Purgue-se, homem!

      Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.

      — Sabe? estou com idéia de mudar de casa.

      O cônego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos sonolentos:

      — Mudar de casa! Ora essa! por quê?

      O padre Amaro chegou a cadeira para ele, e falando baixo:

      — Você percebe... Tenho estado a pensar, é assim esquisito estar em casa de duas mulheres, com uma rapariga...

      — Ora, histórias! Que me vem você contar? Você é hóspede... Deixe- se disso, homem! É como quem está na hospedaria.

      — Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...

      E suspirou; desejava que o cônego o interrogasse, facilitasse as confidências.

      — Então só hoje é que pensa nisso, Amaro?!

      — É verdade, tenho estado a pensar hoje nisto. Tenho as minhas razões. - Ia a dizer: - Fiz uma tolice, - mas acanhou-se.

      O cônego olhou para ele um momento:

      — Homem! seja franco!

      — Sou.

      — Você acha aquilo caro?

      — Não! disse o outro com uma negação impaciente.

      — Bem, então é outra coisa...

      — É. Você que quer? - E num tom magano, com que julgou agradar ao cônego: - A gente também gosta do que é bom...

      — Bem, bem, disse o cônego rindo, percebo. Você, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer por bons modos que tem nojo de tudo aquilo!

      — Tolice! disse Amaro, erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.

      — Oh, homem! exclamou o cônego abrindo os braços. Você quer sair da casa? Por alguma é! Ora a mim parece-me que melhor...

      — É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela sala. Mas estou com esta ferrada! Veja você se me arranja uma casita barata com alguma mobília... Você entende melhor dessas coisas...

      O cônego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando devagar o queixo.

      — Uma casita barata, rosnou por fim. Eu verei, eu verei... talvez.

      — Você compreende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao cônego. A casa da S. Joaneira...

      Mas a porta rangeu, D. Josefa Dias entrou: e depois de conversarem sobre o jantar do abade, o catarro da pobre D. Maria da Assunção, a doença de fígado que ia minando o engraçado cônego Sanches - Amaro saiu, quase contente agora de se não "ter desabotoado com o padre-mestre".

      O cônego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquela resolução de Amaro de deixar a casa da S. Joaneira era bem-vinda: quando ele o trouxera de hóspede para a Rua da Misericórdia, combinara com a S. Joaneira diminuir-lhe a mesada que havia anos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se logo: a S. Joaneira, se não tinha hóspede, dormia só no primeiro andar: o cônego podia então saborear livremente os carinhos da sua velhota;- e Amélia na sua alcova, em cima, era alheia a este "conchegozinho". Quando veio o padre Amaro, a S. Joaneira cedeu-lhe o quarto, e dormia numa cama de ferro ao pé da filha: e o cônego então reconheceu, como ele disse, desconsolado - "que aquele arranjo tinha estragado tudo". Para gozar as doçuras da sesta com a sua S. Joaneira, era necessário que Amélia jantasse fora, que a Ruça estivesse na fonte, outras combinações importunas: e ele, cônego do cabido, na egoísta velhice, quando precisava ter recato com a sua saúde, via-se obrigado a esperar, a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e higiênicos as dificuldades dum colegial que ama a senhora professora. Ora se Amaro saísse, a S. Joaneira descia ao seu quarto, no primeiro andar; vinham as antigas comodidades, as tranquilas sestas. É verdade que tinha de dar a antiga mesada... Daria a mesada!

      — Que diabo! ao menos está um homem à sua vontade, resumiu ele.

      — Que está para aí o mano a falar só? perguntou a Sra. D. Josefa, despertando do quebranto em que ia caindo, ao pé do lume.

      — Estava cá a ma1ucar como hei-de castigar a carne na quaresma - disse o cônego com um riso grosso.

      A essa hora a Ruça chamava o padre Amaro para o chá: e ele subia devagar, com o coração pequenino, receando encontrar a S. Joaneira muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amélia - que tendo-lhe sentido os passos na escada tomara rapidamente a costura, e, com a cabeça muito baixa, dava grandes agulhadas, vermelha como o lenço que abainhava para o cônego.

      — Muito boa noite, menina Amélia.

      — Muito boa noite, senhor pároco.

      Amélia costumava sempre ter um olá! ou um ora viva! muito amável; aquela secura aterrou-o; disse-lhe logo muito perturbado:

      — Menina Amélia, eu peço-lhe que me perdoe... Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz... Mas acredite... Estou resolvido a sair daqui. Até já pedi ao Sr, cônego Dias que me arranjasse casa...

      Falava com o rosto baixo - e não via Amélia erguer os olhos para ele, surpreendida e toda desconsolada.

      Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:

      — Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o Sr. padre Natário: grande jantar! Conte lá, conte lá!

      Amaro teve de dizer os pratos, as pilhérias do Libaninho, a discussão teológica; depois falaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer à S. Joaneira que ia deixar a casa, - o que era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dial

      Na manhã seguinte o cônego foi a casa de Amaro, pela manhã, antes de ir ao coro. O pároco fazia a barba à janela:

      — O1á, padre-mestre! Que há de novo?

      — Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Há uma casita lá para os meus lados, que é um achado. Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.

      Aquela precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente o fio à navalha:

      — Tem mobília?

      —


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