Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
Читать онлайн книгу.velha aldeã ria, com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a massa do seio.
— Olha que arranjo me aparece agora pela tarde!...
— Ai, filha! as mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete cotovelos. Então é que é chupá-las!
Os padres gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se à mesa.
O jantar fora todo cozinhado pelo abade: logo à sopa as exclamações começaram:
— Sim, senhor, famoso! Disto nem no Céu! Bela coisa!
O excelente abade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o senhor chantre, "um divino artista" ! Lera todos os Cozinheiros completos, sabia inúmeras receitas; era inventivo - e, como ele afirmava dando marteladinhas no crânio, "tinha-lhe saído muito petisco daquela cachimônia" ! Vivia tão absorvido pela sua "arte" que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho. E ali vivia feliz, com a sua velha Gertrudes, de muito bom paladar também, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo uma só ambição na vida - ter um dia a jantar o bispo!
— Oh senhor pároco! dizia ele a Amaro, por quem é! mais um bocadinho de cabidela, faça favor! Essas codeazinhas de pão ensopadas no molho! Isso! isso! Que tal, hem? - E com um aspecto modesto: - Não é lá por dizer, mas a cabidela hoje saiu-me boa!
Estava com efeito, como disse o cônego Dias, de tentar Santo Antão no deserto! Todos tinham tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas alargadas, comiam devagar, falando pouco. Como no dia seguinte era a festa da Senhora da Alegria, os sinos na capela, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio-dia dava tons muito alegres à louça, às bojudas canecas azuis com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões escarlates, às frescas malgas de azeitonas pretas - enquanto o bom abade, de olho arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos brancos do peito do capão recheado.
As janelas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camélias vermelhas crescendo junto ao peitoril, e para além das copas das macieiras um pedaço muito vivo de céu azul-ferrete. Uma nora chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a cômoda, entre in-folios, na sua peanha, um Cristo perfilava tristemente contra a parede o seu corpo amarelo, coberto de chagas escarlates: e, aos lados, simpáticos santos sob redomas de vidro, lembravam legendas mais doces de religião amável: o bom gigante S. Cristóvão atravessando o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mãozinha como uma péla; o doce pastor S. Joãozinho coberto com uma pele de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do Céu! Nas paredes, em litografias de coloridos cruéis, o patriarca S. José apoiava-se ao seu cajado onde florescem lírios brancos; o cavalo empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre dum dragão surpreendido; e o bom Santo Antônio, à beira dum regato, sorria, falando a um tubarão. O tlintlim dos copos, o ruído das facas animava a velha sala, de teto de carvalho defumado, duma alegria desusada. E Libaninho devorava, dizendo pilhérias.
— Gertrudinhas, flor do caniço, passa-me as bages. Não me olhes assim, magana, que me fazes revolver os intestinos!
— O diabo é o homem! dizia a velha. Olha para o que lhe deu! Falasse-me aqui há trinta anos, seu perdido!
— Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas pela espinha acima!
Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o coração.
Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguesias.
— Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!
— Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre Natário. - Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas. - Súcia de mariolas, resumiu.
— Deixe lá, padre Natário, deixe lá! disse o abade. Olhe que há pobreza deveras. Por aqui há famílias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão ervas.
— Então que diabo querias tu que eles comessem? exclamou o cônego Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capão. Querias que comessem peru? Cada um como quem é!
O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estômago, e disse com afeto:
— A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
— Ai filhos! acudiu o Libaninho num tom choroso, se houvesse só pobrezinhos isto era o reininho dos Céus!
O padre Amaro considerou com gravidade:
— É bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificações de capelas...
— A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natário com autoridade.
O cônego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
— Para o esplendor do culto e propagação da fé.
— Mas a grande causa da miséria, dizia Natário com uma voz pedante, era a grande imoralidade.
— Ah! lá isso não falemos! exclamou o abade com desgosto. Neste momento há só aqui na freguesia mais de doze raparigas solteiras grávidas! Pois senhores, se as chamo, se as repreendo, põem-se a fungar de riso!
— Lá nos meus sítios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da azeitona, como há falta de braços, vieram as maltas trabalhar. Pois agora o verás! Que desaforo! - Contou a história das maltas, trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam oferecendo os braços pelas fazendas, vivem na promiscuidade e morrem na miséria. - Era necessário andar sempre de cajado em cima deles!
— Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça. Ai, o pecado que vai pelo mundo! Até se me estão a eriçar os cabelos!
Mas a freguesia de Santa Catarina era a pior! As mulheres casadas tinham perdido todo o escrúpulo.
— Piores que cabras, dizia o padre Natário alargando a fivela do colete.
E o padre Brito falou dum caso na freguesia de Amor: raparigas de dezesseis e dezoito anos que costumavam reunir-se num palheiro - o palheiro do Silvério - e passavam lá a noite com um bando de marmanjos!
Então o padre Natário, que já tinha os olhos luzidios, a língua solta, disse repoltreando-se na cadeira e espaçando as palavras:
— Eu não sei o que se passa lá na tua freguesia, Brito; mas se há alguma coisa, o exemplo vem de alto... A mim têm-me dito que tu e a mulher do regedor...
— É mentira! exclamou o Brito, fazendo-se todo escarlate.
— Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, repreendendo-o com bondade.
— É mentira! berrou ele.
— E aqui para nós, meus ricos, disse o cônego Dias baixando a voz, com o olhinho aceso numa malícia confidencial, sempre lhes digo que é uma mulher de mão-cheia!
— É mentira! clamou o Brito. E falando de um jato: - Quem anda a espalhar isso é o morgado da Cumiada, porque o regedor não votou com ele na eleição... Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe os ossos! - Tinha os olhos injetados, brandia o punho: - Quebro-lhe os ossos!
— O caso não é para tanto, homem, considerou Natário.
— Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!
— Ai, sossega, leãozinho! disse o Libaninho