Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros


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a fazer velha! - E voltando-se para ele, com um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:

      — Não é verdade? Estou-me a fazer velha, hem?

      Ele sorria. Custava-lhe falar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do abade, amolecia-o: e a figura dela, os seus ombros, os seus encontros davam-lhe um desejo contínuo e intenso.

      — Aqui está o salto da cabra, disse Amélia parando.

      Era uma abertura estreita no valado: a terra do outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta. Via-se dali a fazenda da S. Joaneira: o campo plano estendia-se até um olival, com a erva fina muito estrelada de pequenos malmequeres brancos; uma vaca preta, de grandes malhas, pastava; e para além viam-se tetos aguçados dos casais, onde voavam revoadas de pardais.

      — E agora? perguntou Amaro.

      — Agora saltar, disse ela rindo.

      — Cá vai! exclamou ele.

      Traçou a capa, saltou: mas escorregou nas ervas úmidas, - e imediatamente Amélia, debruçando-se, rindo muito, com grandes acenos de mãos:

      — E agora adeus, senhor pároco, que eu vou ter com a D. Maria. Aí fica preso na fazenda. Para cima não pode o senhor pular, pela cancela não pode o senhor passar! É o senhor pároco que está preso...

      — Ó menina Amélia! ó menina Amélia!

      Ela cantarolava-lhe, escarnecendo:

      Fico sozinha à varanda,

      Que o meu bem está na prisão!

      Aquelas maneirinhas excitavam o padre - e com os braços erguidos, a voz cálida:

      — Salte, salte!

      Ela então fez voz de mimo:

      — Ai, tenho medinho! tenho medinho...

      — Salte, menina!

      — Lá vai! gritou ela bruscamente.

      Saltou, foi cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se - e sentindo entre os braços o corpo dela, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no pescoço

      Amélia desprendeu-se, ficou diante dele, sufocada, com a face em brasa, compondo na cabeça e em roda do pescoço, com as mãos trêmulas, as pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe:

      — Ameliazinha!

      Mas ela de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do valado. Amaro, com grandes passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou à cancela, Amélia falava ao caseiro, que aparecia com a chave.

      Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira. Amélia adiante palrava com o caseiro; e atrás Amaro, de cabeça baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amélia parou, fazendo-se vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:

      — Ó Antônio, disse, ensine o portão ao senhor pároco. Muito boas tardes, senhor pároco.

      E através das terras úmidas correu para o fundo da quinta, para os lados do olival.

      A Sra. D. Maria da Assunção ainda lá estava, sentada numa pedra, tagarelando com o tio Patrício; um bando de mulheres, com grandes varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.

      — Que é isso, tonta? De onde vens tu a correr, rapariga? Credo! que doida!

      — Vim a correr, disse ela toda vermelha, sufocada.

      Sentou-se ao pé da velha; e ficou imóvel, com as mãos caídas no regaço, respirando fortemente, os beiços entreabertos, os olhos fixos numa abstração. Todo o seu ser se abismava numa só sensação:

      — Gosta de mim! Gosta de mim!

      Estava há muito namorada do padre Amaro - e às vezes, só, no seu quarto, desesperava-se por imaginar que ele não percebia nos seus olhos a confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu ser sem razão, punha-se a cantarolar com uma volubilidade de pássaro. Depois via-o um pouco triste. Por quê? Não conhecia o seu passado; e lembrada do frade de Évora, pensou que ele se fizera padre por um desgosto de amor. Idealizou-o então: supunha-lhe uma natureza muito terna, parecia- lhe que da sua pessoa airosa e pálida se desprendia uma fascinação. Desejou tê-lo por confessor: como seria estar ajoelhada aos pés dele, no confessionário, vendo de perto os seus olhos negros, sentindo a sua voz suave falar do Paraíso! Gostava muito da frescura da sua boca; fazia-se pálida à idéia de o poder abraçar na sua longa batina preta! Quando Amaro saía, ia ao quarto dele, beijava a travesseirinha, guardava os cabelos curtos que tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrasavam-se-lhe quando o ouvia tocar a campainha.

      Se Amaro jantava fora com o cônego Dias, estava todo o dia impertinente, ralhava com a Ruça, às vezes mesmo dizia mal dele, "que era casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito". Quando ele falava de alguma nova confessada, amuava, com ciúme pueril. A sua antiga devoção renascia, cheia de um fervor sentimental: sentia um vago amor físico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu, porque não os distinguia bem de Amaro, e pareciam-lhe dependências da sua pessoa. Lia o seu livro de missa pensando nele como no seu Deus particular. E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ela em cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas passadas dele, abraçando o travesseiro, toda desfalecida de desejos, dando beijos no ar, onde se lhe representavam os lábios do pàroco!

      A tarde caía quando D. Maria e Amélia voltaram para a cidade. Amélia adiante, calada, chibatava a sua burrinha, enquanto D. Maria da Assunção vinha palrando com o moço da quinta, que segurava a arreata. Ao passarem junto à Sé tocou a Ave-Maria. E Amélia, rezando, não podia destacar os olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente erguidas, decerto para que ele ali celebrasse! Lembravam-lhe então domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar a bênção dos degraus do altar-mor: e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a Sra. baronesa da Via-Clara e a mulher do governador civil, tão orgulhosa com o seu nariz de cavalete! Dobravam-se sob os seus dedos erguidos, e achavam decerto também bonitos os seus olhos negros! E era ele que a tinha apertado nos braços, ao pé do valado! Sentia ainda no pescoço a pressão cálida dos seus beiços: uma paixão flamejou como uma chama por todo o seu ser: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos contra o peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma numa devoção:

      — Oh, Nossa Senhora das Dores, minha madrinha, faz que ele goste de mim!

      No adro lajeado cônegos passeavam, conversando. A botica defronte já tinha luz, os bocais reluziam; e por detrás da balança a figura do farmacêutico Carlos, com o seu boné bordado a miçanga, movia-se majestosamente.

      VIII

      O padre Amaro voltara para casa aterrado.

      — E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o coração encolhido.

      Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar ali, na mesma familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".

      Que ela não ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito eclesiástico, a delicadeza para com o hóspede, a atenção para com o amigo do cônego. Mas podia contar à mãe, ao escrevente... Que escândalo! E via o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o, - que era a sua atitude de repreensão - dizer-lhe com pompa: - "São esses desregramentos que desonram o sacerdócio. Não se comportaria de outro modo um Sátiro no monte Olimpo!" - Poderiam desterrá-lo outra vez para alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa de Ribamar?

      E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente presentes aqueles olhos negros, o sorriso cálido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva daquele peito - a sua paixão, crescendo surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia doido, "podia fazer alguma asneira"!

      Decidiu-se


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