Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo. Joaquim Manuel de Macedo

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Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo - Joaquim Manuel de Macedo


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Havemos, continuou o lindo anjinho de oito anos, eu o quero... Olhe, o meu primo Juca me queria também, mas ainda ontem me quebrou a minha mais bonita boneca... Ora, o marido não deve quebrar as bonecas de sua mulher!... Eu quero, pois, me casar com o senhor, que há de apanhar bonitas conchinhas para mim... Além disso ele não tem, como o senhor, os cabelos louros nem a cor rosada...

      — Porém eu gosto mais dos cabelos pretos...

      — Melhor!... Melhor!... exclamou a menina, saltando de prazer. Olhe: os meus são pretos!

      E nisto ela puxou com a sua pequena mãozinha um de seus belos anéis da madeixa, para mostrar-mo, e largando-o depois, eu vi cair outra vez em seu pescoço, de novo torcido como um caracol.

      Ainda corremos mais e continuamos a brincar juntos; e, sem o pensar, nós nos esquecemos de procurar saber os nossos verdadeiros nomes, porque nos bastavam esses com que já nos tratávamos, de:meu marido, minha mulher!

      A viveza, a graça e o espírito da encantadora menina tinham feito desaparecer meu natural acanhamento; nós estávamos como dois antigos camaradas, quando fomos interrompidos em nossas travessuras por um outro menino que para nós corria chorando.

      — O que tem? perguntamos ambos.

      — E meu pai que morre! exclamou ele, apontando para uma casinha que avistamos algumas braças distante de nos.

      Ficamos um momento tristemente surpreendidos; depois, como dominados pelo mesmo pensamento, ela e eu dissemos a um tempo:

      — Vamos lá.

      E corremos para a pequena casa.

      Entramos. Era um quadro de dor e luto que tínhamos ido ver. Uma pobre velha e três meninos, mal vestidos e magros, cercavam o leito em que jazia moribundo um ancião de cinqüenta anos, pouco mais ou menos. Pelo que agora posso concluir, uma síncope havia causado todo o movimento, pranto e desolação que observamos. Quando chegamos ao pé de seu leito, ele tornava a si.

      — Ainda não morri, balbuciou, olhando com ternura para seus filhos, e deixando cair dos olhos grossas lágrimas. Depois, deparando conosco, continuou:

      — Quem são estes dois meninos?...

      Ninguém lhe respondeu, porque todos choravam, sem excetuar a minha bela camarada e eu.

      — Não chorem ao pé de mim, exclamou o velho, sufocado em pranto e escondendo o rosto entre as mãos, enquanto seus três filhos e o quarto que tínhamos há pouco visto fora, se atiravam sobre ele, no excesso da maior, da mais nobre e da mais sublime das dores.

      A minha camarada dirigiu-se então à velha.

      — O que tem então ele?... perguntou com viva demonstração de interesse.

      — Oh, meus meninos, respondeu a aflita velha, ele sofre uma enfermidade cruel, mas

      que poderia não ser mortal... porém e pobre!... E morre mais depressa pelo pesar de deixar seus filhos expostos à fome!... Morre de miséria!... Morre de fome!...

      — Fome! exclamamos com espanto; fome! pois também morre-se de fome?...

      E instintivamente a minha interessante companheira tirou do bolso do seu avental uma moeda de ouro e, dando-a à velha, disse:

      — Foi meu padrinho que ma deu hoje de manhã... eu não preciso dela... não tenho fome.

      E eu tirei do meu bolso uma nota, não me lembro de que valor, e por minha vez a entreguei, dizendo:

      — Foi minha mãe que ma deu e ela me dá um abraço, sempre que faço esmolas aos pobres.

      Não é possível descrever o que se passou então naquela miserável choupana. Minha linda mulher e eu tivemos de ser abraçados mil vezes, de ver de joelhos a nossos pés a velha e os meninos... Finalmente nós nos aproximamos dele, que nos apertou com entusiasmo contra o coração.

      — Quem sois? pôde, enfim, dizer; quem sois?

      — Duas crianças, foi a menina que respondeu.

      — Dois anjos, tornou o velho. E quem é este menino?...

      — É o meu camarada, disse ainda ela. Vosso irmão?

      — Não senhor, meu... marido.

      — Marido?

      — Sim, eu quero que ele seja meu marido.

      — Deus realize vossos desejos!...

      Acabando de pronunciar estas palavras, o ancião guardou silêncio por alguns instantes... bebeu com sofreguidão um púcaro cheio de água e, olhando de novo para nós, e tendo no rosto um ar de inspiração e em suas palavras um acento profético, exclamou:

      — Seja dado ao homem agonizante lançar seus últimos pensamentos do leito da morte, além dos anos, que já não serão para ele, e penetrar com seus olhares através do véu futuro... Meus filhos, amai-vos e amai-vos muito! A virtude se deve ajuntar, assim como o vício se procura; sim, amai-vos. Eu não vos iludo... vejo lá... bem longe... a promessa realizada! São dois anjos que se unem... vêde!... Os meninos que entraram na casa do miserável, que enxugaram o pranto e mataram a fome da indigência, são abençoados por Deus e unidos em nome d’Ele!... Meus filhos, eu os vejo casados lá no futuro!

      — Oh!... Eis aí outra vez o delírio!... disse a velha, vendo a exaltação e o semblante afogueado do enfermo.

      — Não, minha mãe, continuou ele; não! Não é delírio... Pois quê!... Não pode o Eterno abençoar a virtude pela minha boca?... Oh! Meus meninos! Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... Ainda uma vez... lá no futuro... vós o sentireis.

      Nós estávamos espantados: o rosto do ancião se havia tornado rubro, seus olhos flamejantes... Seus lábios tremiam convulsivamente, sua mão rugosa tinha três vezes nos abençoado.

      Escutando suas palavras, eu acreditei que estávamos ouvindo uma profecia infalivelmente realizável, pronunciada por um inspirado do Senhor.

      Não parou aí a nossa admiração. O doente, cujas forças pareciam haver reaparecido subitamente, apoiando-se sobre um dos cotovelos, abriu a gaveta de uma mesa que estava junto

      de seu leito, e tirando de uma pequena e antiga caixa dois breves, os deu à velha dizendo:

      — Minha mãe, descosa esses dois breves.

      A velha, obedecendo pontualmente, os descoseu com prontidão. Os breves eram dois: um verde e outro branco.

      Depois o ancião, voltando-se para mim, disse:

      Menino! Que trazeis convosco que possais oferecer a esta menina?...

      Eu corri com os olhos tudo que em mim havia e só achei para entregar ao admirável homem que me falava um lindo alfinete de camafeu, que meu pai me tinha dado para trazer ao peito: maquinalmente, pus-lhe nas mãos o meu camafeu.

      O velho quebrou o pé do alfinete e dando-o a sua mãe, acrescentou:

      — Minha mãe, cosa dentro do breve branco este camafeu.

      E voltando-se para minha bela camarada, continuou:

      — Menina! Que trazeis convosco que possais oferecer a este menino?...

      A menina, atilada e viva, como já esperando tal pergunta, entregou-lhe um botão de esmeralda que trazia em sua camisinha.

      O velho o deu a sua mãe, dizendo:

      — Minha mãe, cosa esta esmeralda dentro do breve verde.

      Quando as ordens do ancião foram completamente executadas, ele tomou os dois breves e, dando-me o de cor branca, disse-me:

      — Tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina. Ele contém o vosso camafeu: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho a fim de que ela o guarde com desvelo.

      Eu mal compreendi o que o velho queria: ainda maquinalmente


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